Málúù dúdú, boi-bumbá Caprichoso
Com "Málúù dúdú", boi preto, o boi-bumbá Caprichoso parece ter a intenção de africanizar a toada parintinense em 2024, observa a antropóloga Dassuem Nogueira

Ednilson Maciel, Por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 05/06/2024 às 19:49 | Atualizado em: 05/06/2024 às 19:49
Málúù dúdú é a tradução literal de “vaca preta” em iorubá, segundo o Google tradutor. A tradução de touro ou boi seria “akọmalu” (“akọ màlúù”).
Os iorubás são um grupo étnico da África ocidental, cuja população se concentrou no que hoje é o território da Nigéria, mas também estão presentes em Benin, Togo e Serra Leoa.
Os iorubás que vieram escravizados para o Brasil ficaram conhecidos por nagô.
O termo se estendeu aos demais dessa etnia, independentemente de sua localização.
Diferentemente do que ocorre no que chamamos de ocidente, a sabedoria iorubá não separa a matéria do saber.
Assim, ao empregarmos a matemática, empreendemos saberes da filosofia, religião, arte.
Por exemplo, na matemática desse povo, a unidade mínima é o ogum.
O entendimento desses cálculos é necessário para a leitura do que ficou conhecido no Brasil como búzios.
A riquíssima cultura iorubá foi cultivada no país a partir de territórios culturais. Assim, terreiros de religiões de matriz iorubá, na capoeira nagô, nos quilombos e nos terreiros de samba.
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Territórios culturais
Embora o carnaval tenha origem católica, demarcando o início da quaresma, ele é uma festa marcadamente negra.
Da lógica dos bloquinhos à escola de samba, unidos pela percussão, as tecnologias sociais, criativas e produtivas foram construídas pelos negros no Brasil, América Latina, Caribe e em partes dos Estados Unidos.
Não é à toa que o nome é “escola de samba”. As escolas de samba são espaços de articulação, de recuperação de valores, de sociabilidade, musicalidade e dança.
Do mesmo modo, não é à toa que os nomes originais dos espaços que hoje chamamos de “curral” eram chamados de “terreiro”.
“Terreiro do boi Garantido” e “terreiro do boi Caprichoso” são fartamente mencionados em antigas toadas.
Assim como o carnaval, o boi-bumbá parintinense nasce da articulação entre indígenas e negros vindos, principalmente, de quilombos.
Os terreiros dos bois serviram à sociabilidade desses grupos e ao cultivo da musicalidade e das danças negra e indígena em torno de tambores.
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Apagamentos
Houve um processo de apagamento das digitais negras no boi-bumbá parintinense.
Transformação ocorrida a reboque do que aconteceu no Brasil, principalmente, por meio do discurso da miscigenação cultural.
Quando se definiu que a cultura cabocla era resultado das matrizes indígena e branca, a contribuição negra foi apagada ou deslocada, como se fosse algo importado.
Não é à toa que Pai Francisco e Mãe Catirina, os negros do auto, não contam pontos na disputa.
No processo de criação do formato atual de boi de arena, eles ficaram de lado.
Não se viu beleza neles nem potencial para fazer deles um espetáculo.
Quando falamos que o racismo estrutura os lugares dos negros e suas culturas na sociedade, é desse tipo de coisa que se está falando.
Assim como o carnaval, o boi-bumbá pode até ter suas origens na cultura portuguesa, mas ele se fez no Brasil do último século como um boi de preto.
Aliás, em Parintins, os que se entendiam como os brancos da ilha não frequentavam o terreiro dos bois. Não antes de renomear seus espaços como “currais”.
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Alumiações
Khetlhen Costa, artista manauara, em seu trabalho intitulado “Ressonâncias de afetos”, nos provoca a “alumiar” as histórias de mulheres afroindígenas na ancestralidade amazônica.
Seu trabalho ganhou o prêmio Capes 2023 de melhor tese em artes visuais.
A partir de intervenções sobre fotografias dessas mulheres, ela conta histórias possíveis, já que não há registros sobre elas.
A famosa paternidade não definida do boi-bumbá Caprichoso não é um caso de abandono, mas sim de apagamento.
Ao invocar em língua iorubá o málúù dúdú de Parintins, o boi de encantaria, o Caprichoso faz um exercício semelhante ao de Costa.
Há um ditado iorubá que diz “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”.
O rapper Emicida, em seu trabalho “Amarelo”, interpreta esse ditado como a oportunidade de hoje recontarmos a história apagada ontem.
Não a história feita a partir de documentos, como contam os brancos. Esses não temos.
Primeiramente, porque esse é um recurso inventado por eles.
Depois, porque a documentação não é algo que os não brancos tiveram direito e acesso.
Por isso, trata-se de contar a história que se quer para o hoje e para o futuro.
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Málúù dúdú, boi preto
Muita gente não compreendeu porque a toada “Málúù dúdú” possui trechos em que a marujada de guerra evoca o ritmo dos blocos afrobaianos como Ilê Ayê, Ara ketu, Muzenza.
O Ilê Ayê, cujo significado em iorubá é “mundo negro”, é um dos responsáveis pela africanização do carnaval de Salvador, segundo o antropólogo Michel Agier.
Com “Málúù dúdú”, boi preto, o boi-bumbá Caprichoso parece ter a intenção de africanizar a toada parintinense em 2024.
Desse modo, com “a ponta do chifre é a lança que avança”, busca-se acertar no passado o que foi, até o momento, muito mal contado.
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*A autora é antropóloga.
Foto: Alex Pazuello/Secom