James Marinho: dos palcos do boi de Parintins para a medicina

Ex-dançarino dos bois de Parintins construiu uma trajetória inspiradora: dos palcos e grandes shows ao diploma de médico, sem jamais perder o vínculo com suas raízes culturais.

Diamantino Junior

Publicado em: 07/06/2025 às 15:41 | Atualizado em: 07/06/2025 às 15:45

Por Dassuem Nogueira*

Em 1996, o Brasil estava tomado por uma febre nacional que colocava dançarinos de axé em evidência, puxados pelos que acompanhavam o grupo Gerasamba, que, em seguida, se tornou É o Tchan do Brasil. Era o tempo de Carla Perez, Jacaré, Débora Brasil, Sheila Carvalho e Sheila Melo.

No Amazonas, a toada dos bois-bumbás conquistava o público da capital Manaus pela primeira vez.

Junto à beleza e identidade proporcionadas pelas toadas, vieram as coreografias. 

James Marinho, hoje com 46 anos, é da primeira geração de dançarinos de boi-bumbá que sobe aos palcos, junto com os levantadores de toadas (os cantores), para conduzir o público em coreografias coletivas.

O ano da virada

Em 1996, James tinha 16 anos, estudava no Colégio Brasileiro, no centro da capital, e venceu o concurso de beleza “Gato e Gata” da escola.

No dia 1º de maio daquele ano, a dupla de vencedores foi chamada para participar de um programa de televisão, no qual também estavam os levantadores de toada Tony Medeiros e Klinger Araújo (1969-2020).

Nessa época, o grupo Carrapicho fazia sucesso em Manaus por seu repertório de forró. E se apresentava com frequência na casa de show Juventus, do bairro Santo Antônio, zona centro-oeste.

A trupe de dançarinos da banda também executava as coreografias de boi.

O Carrapicho foi um dos primeiros a gravar esse gênero. E, em 1996, gravou a toada que projetou o ritmo no mundo: “Tic, tic, tac”, do mestre Braulino Lima.

As coreografias realizadas pelo Carrapicho eram as únicas que James Marinho tinha visto até aquele 1.º de maio.

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Ilha Tupinambarana

Os avós paternos de James, Raimundo Rodrigues Farias e Rosa Belém Gomes, nasceram no paraná de Parintins, área rural do município.

O pai, Pascoal Gomes Farias, se mudou para Manaus em busca de melhores oportunidades. James têm cinco irmãos.

Até 1996, o boi-bumbá era uma festa local, que não mobilizava muito além das redondezas de Parintins. E existia na memória dos mais velhos como uma brincadeira junina, como as quadrilhas e cirandas.

A primeira vez que James, nascido em Manaus, ouviu falar em boi-bumbá foi no carimbó que ouvia na casa dos tios: “Boi-bumbá de Parintins”, do álbum Pinduca vol. 15 (1986), que começava assim:

“Na Ilha Tupinambarana

Todo mundo reunido

Parintins está enfeitada para receber o mais querido

Será que é o Caprichoso, ou se é o Garantido?”

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Sonho de criança

A vida da família saída do interior para a capital em busca de melhores oportunidades não era fácil.

Aos 7 anos, James vendia picolé nas ruas de Manaus. Também vendeu açaí em tabuleiro enquanto auxiliava o pai em seu ofício na construção naval para ajudar a família a se manter.

Ser médico era algo que existia na seara dos sonhos infantis. Porém, James jamais pensou em ser dançarino.

O Furacão

Naquele 1º de maio de 1996, durante o programa de televisão, James tentou acompanhar as coreografias com os dançarinos de Tony Medeiros no palco.

Ao assumir o palco, Klinger Araújo disse ao microfone, olhando para James: “Tô de olho em ti”.

No final do programa, Klinger, conhecido como o “Furacão do Boi”, convidou James para dançar em sua banda.

“Eu não sabia nem o que pensar. Mas, fui”.

Na sexta-feira seguinte, o dançarino foi à casa de Klinger imaginando que iria ensaiar com a banda. Mas, seguiu-se um diálogo mais ou menos assim:

_ “Vamos! Pega uma roupa pra ti!”

_ “Vamos pra onde?”

_ “Pro show!”

_ “Mas, eu não sei dançar, eu não ensaiei”

_ “Te vira!”.

E naquela noite, a trupe do Furacão fez três shows.

O último deles foi a primeira edição do “Vamos brincar de boi”, no Studio 5, o primeiro grande evento de boi-bumbá de muitos que se seguiram.

“Aquilo pra mim era muito novo. Me senti fora do meu ambiente porque era algo diferente. Não tinha sentido aquilo do mundo da arte, do público. Estava lotado. Dali pra frente minha vida mudou”, afirmou James.

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O glamour

Com o sucesso do boi em Manaus e no mundo, James viveu momentos de estrelato que poucos artistas têm a oportunidade de experimentar, como grandes públicos, viagens e o assédio descontrolado dos fãs.

“Em alguns lugares que nós fizemos shows, tínhamos que ter segurança para sair do palco. Em Roraima, havia um público gigantesco. Então para sair do show eram cinco ou seis seguranças ao redor pra gente conseguir chegar à van. Era uma loucura!”.

E acrescentou:

“Havia lugar em que a gente desfilava em carro aberto na cidade antes do show. Por exemplo, um que fizemos em Letícia [cidade colombiana fronteiriça com Brasil). O Klinger tinha uma música estourada lá, que era ‘Repeneirando’. E nós fizemos um percurso de Tabatinga [Amazonas] a Letícia em carro aberto. As crianças saiam da escola, gritavam e davam tchau para o Klinger. Fizemos o show em um estádio que devia ter entre 25 mil a 30 mil pessoas, um público grandioso”.

O biólogo

James dançou com o Furacão de 1996 a 2001. O grupo viajou muito. E ele não concluiu o terceiro ano do Ensino Médio. Todavia , sempre quis estudar.

Em 2000, Klinger fez uma permuta na qual obteve bolsas de estudos em uma escola particular para seus dançarinos, em troca de apresentações em um grande festival feito por essa instituição.

E assim James pôde terminar o Ensino Médio.

Ao ingressar na faculdade, não tinha recursos financeiros para fazer a tão sonhada medicina.

Então, suas opções eram pragmáticas: poderia fazer um curso da área da saúde ou ciências biológicas.

Nisso, Klinger Araújo o ajudou de modo singular:

“Deixa eu ver como vai ficar: James, o educador físico … não, não soa bem. James biólogo! É mais imponente! Eu acho que biólogo fica mais bonito pra eu te chamar: James, o meu biólogo”.

E ele cursou ciências biológicas de 2001 a 2004, mesmo período em que dançou com David Assayag, outro consagrado levantador de toadas.

A vida dupla

A vida de estudante, como é para todos aqueles que trabalham para estudar, era de aperto e correria.

Para conseguir arcar com a faculdade, além de dançar com David Assayag, James trabalhou em outras bandas, como o grupo Os Embaixadores, no qual dançava músicas de baile.

E fez muitas viagens internacionais representando o boi-bumbá de Parintins, nas quais recebia valores maiores que o ajudavam.

Porém, distinta da grande maioria dos estudantes, a vida profissional de James seguia rumo diferente.

“O assédio massageava um pouco o ego, né? Lembro que, quando tínhamos shows na periferia de Manaus, era uma loucura. Era um pandemônio para sair dos locais. Lembro que fizemos um show num local, acho que foi no campo da Betânia [bairro na zona Sul], que eu não conseguia descer no palco. Não conseguia sair e tive que pular na frente do palco e sair correndo, enquanto o pessoal abria a porta da van”.

E continuou: 

“O motorista era muito nosso amigo. E quando eu saía correndo, de fantasia, do palco, ele arrancava com o carro um pouquinho, eu tinha que correr atrás do carro e o povo correndo atrás de mim”. 

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Medicina

No final de 2004, James concluiu o curso de ciências biológicas. E a amiga Karine Rita, o chamou para fazer o vestibular de medicina na mesma faculdade particular.

“Mas, eu não tenho como pagar”, respondeu para a amiga. E, então, ela lhe informou as condições para fazer o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). E, com esse financiamento, James cursou medicina.

Nessa época, além de dançar, já com o diploma, ele também trabalhou como professor de biologia para completar a renda.

O corre

Sem poder contar com a ajuda da internet, que não era acessível como nos dias de hoje, James levava os livros e cadernos para estudar as matérias nos barcos, lanchas, aviões e hotéis.

E, muitas vezes, foi do porto de Manaus direto para a sala de aula para fazer provas.

Em sua jornada com a faculdade, pôde contar com a ajuda e a torcida dos artistas com os quais trabalhou, além de Klinger.

Quando não podia viajar nas semanas de provas, David Assayag o apoiava:

“Se não dá, fica e estuda, não se preocupa com isso, a gente dá um jeito”.

Arlindo Júnior, ícone das toadas de boi, sempre lhe perguntava:

“Queridão, como é que tá lá?”.

Se James precisava de ajuda para pagar os estudos, o Pop da Selva, como Arlindo era chamado, o socorria.

Os professores, a maioria fã de boi-bumbá, também lhe ajudaram flexibilizando as datas das provas sempre que possível.

O combustível

James pensou em desistir várias vezes. Contudo, em 2004 nasceu seu maior combustível: sua primeira filha, Ayssa.

“Eu pensei em desistir várias vezes. Às vezes, acordava à noite, cansado, preocupado em como ia pagar a faculdade, que, mesmo com o Fies, era muito difícil. E olhava pra minha filha dormindo e pensava: ‘Não, tenho que continuar”’.

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A despedida

James dançou de 2005 a 2010 com Arlindo Júnior e se formou em medicina em 2011.

Em 2012, o Pop da Selva o chamou para gravar DVD e fazer a turnê do álbum “Arlindo com a galera”, gravado no parque Jefferson Peres, na região central da capital.

“Na verdade, não foi fácil parar. Não foi fácil parar com algo que você viveu, foi desde 1996 até 2012 dançando. Mesmo depois, continuei a fazer participações especiais com um artista ou outro até 2017. Ficava pensando, meio depressivo, uma tristeza no coração por ter que parar, foi tudo muito mágico”.

O ato de despedida foi o corte dos cabelos compridos que James possuía e ajudava a compor a imagem do indígena que o gênero do boi-bumbá invoca.

Pelo mundo

Nos 18 anos em que foi dançarino de boi-bumbá, James viveu experiências que um grupo seleto de artistas viveu. 

“Fiz um show com o David, acho que foi em Porto Velho, em um estádio, também, que tinha por volta ali de 40 mil pessoas. Em outro show que fizemos nos 500 anos do Brasil na França, havia 60 mil pessoas no estádio. Esses momentos ficaram marcados. Fora Carnaboi, Boi Manaus que, em uma noite dá 15 mil a 20 mil pessoas”.

Com Klinger Araújo, James foi aos programas da Xuxa, Ratinho, Raul Gil e Adriane Galisteu.

Foi a duas copas do mundo de futebol, em Paris, pelo boi Garantido; e na África do Sul, pelo Caprichoso.

Conheceu 52 dos 62 municípios do Amazonas, todos os estados do Brasil, e outros países: Argentina, Colômbia, Venezuela e Bolívia, França, Portugal, Espanha, Inglaterra, África do Sul e Itália.

“Sou muito grato a tudo que a cultura me proporcionou, pelo conhecimento empírico de outros lugares, outras pessoas, isso acendeu a chama dentro de mim: você chegou até aqui, dá pra fazer outras coisas”.  

Gratidão

Atualmente, James é médico do trabalho e endocrinologista especializado em emagrecimento e performance.

“Tenho muito orgulho de onde a cultura pôde me ajudar a chegar, sou grato a todas essas pessoas que passaram na minha vida, aos cantores, aos músicos, colegas dançarinos, tenho amizades aí de quase trinta anos”.

Para James, a sua ligação com a cultura do boi-bumbá se explica pela raiz parintinense:

“Eu tenho muito orgulho de dizer que meus avós são parintinenses, que meu pai, um cara honesto, trabalhador, é parintinense. O meu lugar no mundo é Parintins! Quando estou lá, renovo as energias, os problemas somem naquele momento e consigo viver aquilo ali”.

A paixão inveterada pelo boi é mais difícil de explicar com palavras:

“Sempre falo para as pessoas que não entendem de onde vem essa paixão: você tem que ir a Parintins para entender o que é ser feliz. E claro, ser feliz do lado do Caprichoso”.

*A autora é antropóloga.

Fotos: acervo de James Marinho/cedidas em cortesia ao BNC Amazonas