George Orwell e o projeto de anistia

Ao contrário do que se prega, o que está em jogo é a tentativa de reformular o sentido dos acontecimentos, apagar o caráter criminoso de uma tentativa de golpe de Estado

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 19/04/2025 às 00:13 | Atualizado em: 19/04/2025 às 00:13

“Guerra é paz. Liberdade é escravidão. Ignorância é força.” Este é o lema do Partido que governa a Oceania, sociedade ficcional criada por George Orwell em seu clássico distópico 1984

Publicado em 1949, o romance se tornou um dos maiores alertas literários contra os perigos do autoritarismo, da manipulação da verdade e da reescrita da história. O livro 1984 narra a história de um Estado totalitário que “vigia e pune” – aqui, o leitor talvez ouça ao fundo a voz de Michel Foucault. 

Nesse Estado, todas as formas de resistência são esmagadas. A própria linguagem é reformulada por meio da novafala, um idioma criado para limitar o pensamento e impedir a formulação de ideias subversivas. Pensar livremente é, por definição, um crime.

Na distopia orwelliana, há um órgão responsável por reescrever os acontecimentos passados: o Ministério da Verdade. Cabe a ele apagar documentos, alterar registros, eliminar vestígios incômodos. Assim, o governo garante que a história sempre sirva aos interesses do presente – ou melhor, do poder vigente.

O Brasil distópico

Atualmente, a distopia brasileira ganha forma por meio da tentativa de conceder anistia a golpistas. Ao contrário do que se prega, o que está em jogo é a tentativa de reformular o sentido dos acontecimentos, apagar o caráter criminoso de uma tentativa de golpe de Estado, e transformar atos violentos contra a democracia em manifestações de legítima insatisfação política.

A nova proposta de anistia, na verdade, não busca apenas inocentar os culpados, mas reescrever a própria história. O contexto é diferente de 1964, mas o enredo é semelhante – mais uma tentativa de golpe contra a democracia, novamente protagonizada por militares e seus apoiadores civis. 

Nesse contexto, tanto o Projeto de Lei n. 5.064/2023, proposto pelo senador Hamilton Mourão, quanto o de n. 2.858/2022, proposto pelo ex-deputado federal major Vitor Hugo, se apropriam, de forma cínica, do espírito da Lei da Anistia de 1979. Não por acaso, o artigo primeiro dos dois projetos repete quase literalmente o texto da Lei n. 6.683, como se tivesse sido copiado e colado. Mais uma vez, o objetivo parece claro: livrar os militares de qualquer responsabilização. 

A Lei da Anistia de 1979

A Lei da Anistia de 1979 não foi uma proposta dos militares – tampouco foi feita para eles. Ela foi fruto de pressão popular, construída por movimentos feministas, estudantis, políticos perseguidos e exilados, bem como por familiares de vítimas da repressão. Portanto, foi uma lei oriunda da luta política da sociedade civil.

Havia naquele momento um clamor coletivo por justiça e liberdade. Esse desejo mobilizou comitês dentro e fora do Brasil em defesa do fim da ditadura e da redemocratização do país.  Em 1979, a demanda era clara: garantir o retorno dos exilados e a liberdade plena e irrestrita para todos os brasileiros perseguidos durante o regime militar. A anistia era para eles – para as vítimas, não para os algozes. 

No entanto, em nome de uma suposta pacificação nacional, os militares se apropriaram dessa luta legítima e incluíram na lei dispositivos que garantiram a impunidade de seus próprios crimes. Foi uma barganha perversa, marcada por cinismo e covardia: a sociedade pedia justiça, os militares responderam com chantagem. 

Novo golpe, nova anistia

Em 2025, mais uma vez sob o pretexto de promover a pacificação nacional – com a alegação de preocupações com o direito daqueles que já foram julgados, condenados e presos pelos atos terroristas de 8 de janeiro de 2023 – os militares, por meio de seus representantes no Congresso Nacional, tentam aprovar uma nova lei da anistia ampla e irrestrita que, não por acaso, os beneficia diretamente. 

Nesse âmbito, segundo reportagem do jornal O Globo, intitulada “PL da anistia abre brecha para reverter eventuais condenações de Bolsonaro”, especialistas em direito apontam que o texto atual do PL n. 2.858 abre margem para a anulação de possíveis condenações futuras contra o ex-presidente, especialmente aquelas relacionadas à tentativa de deslegitimação das eleições de 2022 – e pode até mesmo reverter sua inelegibilidade.

Ainda de acordo com a matéria, a proposta não se limita aos executores dos atos do 8 de janeiro. O projeto concede anistia também a todos os que prestaram qualquer tipo de apoio: financeiro, logístico, técnico ou até mesmo simbólico, como manifestações em redes sociais e plataformas digitais. E vai além: anistia, inclusive, os que participaram de eventos anteriores ou posteriores aos ataques, ampliando perigosamente o escopo da impunidade.

Conclusão 

Nesse contexto, o paralelo com o livro 1984 se impõe. Assim como na ficção, vivemos um tempo em que vilões são convertidos em heróis; crimes, em expressões de liberdade; e fatos, em narrativas convenientes. “Ignorância é força”, como bem dizia o Partido – e essa força da ignorância tem sido usada para sustentar projetos autoritários e antidemocráticos, agora travestidos de apelos à conciliação e ao “esquecimento necessário”.

Entretanto, é preciso que se diga que não há democracia sem memória. Como afirmou certa vez Paulo Freire, citando Hegel: “na consciência do oprimido reside a verdade do opressor”. Por isso, não devemos nos iludir: a tentativa de apagar os crimes do 8 de janeiro é, na verdade, uma forma de perpetuá-los. Trata-se de um pacto pela impunidade, disfarçado de gesto republicano.

Ao final de 1984, o protagonista, Winston Smith, é quebrado pelo sistema. Ele já não luta, já não deseja liberdade, já não questiona a verdade oficial. Ele ama o Grande Irmão. Se a anistia for concedida, corremos o risco de, também nós, aprendermos a amar os que nos atacaram. 

Portanto, Orwell nos alerta: “quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”. A pergunta que permanece, diante desse cenário, é a seguinte: vamos permitir?

*Sociólogo

Arte: Gilmal