Folclore parintinense traz no DNA a superação do aparheid
A obra de Raimundinho Dutra resgata um episódio que aponta a trajetória do festival folclórico de Parintins (AM).

Wilson Nogueira, especial para o BNC Amazonas
Publicado em: 08/11/2023 às 06:57 | Atualizado em: 10/11/2023 às 16:49
Uma história de amor entre um senhôzinho e uma moça escravizada confirma que o DNA das festas folclóricas de Parintins (AM) vem da senzala.
A ponta do novelo dessa epopeia está no tráfico de Angurá (possivelmente uma pronúncia para Angola, África) para o Brasil, em 1858, do casal Gaspar e Daala, cuja filha Filomena casou-se com o senhôzinho Marçal Mendes de Assumpção, e veio morar em Parintins, a partir de 1888.
Essa versão é narrada pelo poeta Raimundo Nonato de Jesus Dutra, o Raimundinho Dutra, em seu livro A revelação histórica do folclore parintinense (2005).
Isso não elimina a interpretação, mais corrente, de que as danças típicas dos folguedos da classe subalternizada não tenham a participação de migrantes do nordeste brasileiro para os seringais amazônicos, no final do século 18 e começo do século 19.
Porém, enfatiza que personagens negras com protagonismo social são apagadas pela ideologia escravista, que persiste até hoje.
Parintins
O livro de Raimundinho Dutra, escrito em versos e prosa, resgata um episódio que aponta a trajetória do festival folclórico de Parintins (AM).
Conta o escritor que o senhôzinho Marçal Mendes de Assumpção, filho de Artur Fernandes Mendes de Assumpção e dona Maria Carolina, proprietários de terras em Cametá (hoje PA), apaixonou-se, perdidamente, por Filomena de Souza.
Desde criança, Marçal Mendes estudou em Belém do Pará, mas alimentava o sentimento de amor por Filomena, manifestado, ainda na adolescência, no decorrer das férias na fazenda do pai.
Depois de concluir o Científico, o equivalente a uma graduação de hoje, retornou para morar com os pais e ajudá-los na administração da fazenda.
Os longos anos fora de casa, não lhe corromperam o coração. A si e à amada fez prevalecer as chamas do amor a quedar-se ao preconceito de cor e classe social.
O anúncio de que iria se casar com Filomena, “para tê-la como esposa e não como amante”, despertou descontentamento no pai, homem forjado na ideologia escravista. O senhor da fazenda determinou, então, que o filho se decidisse: a sucessão de herdeiro ou casamento com Filomena.
Marçal não titubeou: preferiu ser deserdado a trair o amor. Ele comunicou aos pais, que, sem vínculo com a fazenda, migraria para um lugar bem distante, para viver com a mulher que escolheu para vida toda.
O pai não recuou da punição, mas lhe entregou uma boa quantia para que amenizasse as dificuldades que poderia enfrentar, agora casado.
E outubro de 1888, o casal desembarcou em Parintins, onde comprou terras, fixou residência; logo, Marçal Mendes tornou-se renomado construtor civil.
Em Parintins, nasceram os nove filhos de Marçal e Filomena: Raimunda, Victor, Maria, Adelino, Fé (Sila Marçal), Rosa, João Reges, Esequiel e Enedino.
A casa do senhôzinho deserdado e sua amada negra se transformou em um lugar de agitação cultural, com a participação de donas de casa, pescadores, estivadores e alguns poucos estudantes universitários. Abrigou, inclusive, uma escola de iniciação musical, de 1900 a 1910.
Brincadeira de terreiro
Raimundinho Dutra, filho de Sila Marçal, assegura que na casa dos seus avós, em 1906, surgiu a primeira brincadeira de terreiro, o Pássaro Tucano, “para dar mais alegria à cidade”. No ano seguinte, apareceu o Pássaro Garça, e logo veio a Festa do Espírito Santo, “com maestro e guloseimas”.
O autor destaca que foram os seus avós e amigos que criaram o primeiro boi-bumbá parintinense, o Turuna, em 1910, seguido por Douradinho, Boi do Velho Piauí, Garantido, Pai do Campo, Galante e Caprichoso (Conferir a Linha do Tempo).
Leia mais
Raimundinho Dutra, 93 anos do artista dos versos e poesias azuladas
Festival de Parintins
Quando se iniciou o Festival Folclórico de Parintins, em 1965, existiam apenas os bois-bumbás Garantido e Caprichoso na zona urbana, e o boi-bumbá Campineiro, na zona rural, na comunidade do Aninga.
Raimundinho Dutra, ainda jovem, se tornou um dos mais expressivos poetas do boi-bumbá Caprichoso. Suas composições são lembradas e tocadas até hoje nas rodadas de música de boi-bumbá.
A revelação histórica do Folclore Parintinense é o resultado de longos anos de anotações e recurso de memória pessoal e coletiva. No livro, ele acentua que pesquisa sobre as brincadeiras que nasceram no entorno da sua família e dos amigos desde 1948.
As fontes, episódios e contextos das brincadeiras abordados são fartos e devidamente explicitados. Ele chega a relacionar nomes de pessoas e datas de reuniões dos episódios do âmbito da delimitação do tema livro.
Entre esses brincantes havia camaradagem, respeito e solidariedade, haja vista que comungavam a mesma classe social.
Rivalidade
A rivalidade entre os bois-bumbás, inclusive entre Garantido e Caprichoso, era demonstrada por meio da disputa de repentes.
Uma disputa que até hoje perdura, agora na arena do bumbódromo, em vários momentos e situações da apresentação dos dois bumbás.
O livro de Raimundinho Dutra ainda põe mais lenha nessa fogueira de São João, quando reporta diferentes datas para a criação de Garantido e Caprichoso, e não 1913, como ambos declaram ter surgido (ver Linha do Tempo)
Há convicção, da parte do autor, que as primeiras sementes da espetacular festa folclórica de Parintins, vindas da senzala, germinaram no terreiro do senhôzinho Marçal e da dona Filomena.
“[…] pode-se dizer que essa apoteose folclórica de hoje é originária da plebe, da plebe cansada, mas [que, mesmo assim, não] tirou das mãos o zabumba e ganzá […], escreveu.
Leia mais
#Toadas | Reverência ao poeta Raimundinho Dutra
O livro
Por fim, o livro de Raimundinho Dutra, editada pela Prefeitura de Parintins e, por isso, com exemplares e circulação limitados, está há algum tempo esgotada, e agora precisa ser resgatada, para que passe pelas mãos e mentes das novas gerações.
“Somos felizes, muito felizes, que essa felicidade se estenda a todos os povos e raças, portanto, brinquemos de boi!”, ensina o poeta.
Linha do tempo | |
1858 | Tráfico do casal Gaspar e Daala de Angurá para o Brasil |
1868 | Os pais de Marçal se mudam de São Luís para Cametá |
1873 | Nasce Filomena, na fazenda |
1874 | Marçal começou a estudar, em Belém |
1879 | Marçal Mendes concluiu o ensino primário |
1884 | Marçal Mendes conclui o ginasial |
1887 | Marçal Mendes conclui o científico |
1888 | Marçal pede a mão de Filomena em casamento |
1888 | Marçal e Filomena chegam a Parintins, em 25 de outubro |
1890 | Nasce a primeira filha, Raimunda, dos nove filhos do casal |
1906 | Surge o Pássaro Tucano, por sugestão de dona Maria Filomena |
1907 | Surge o Pássaro Garça |
1908 | Surge a Festa do Espírito Santo, com mastro e oferta de guloseimas |
1910 | Surge o boi-bumbá Turuna |
1911 | Morre Marçal Mendes de Assumpção |
1913 | Surge o boi-bumbá Douradinho |
1916-18 | Houve interrupção na brincadeira de boi-bumbá |
1915 | Surge o boi-bumbá Boi do Velho Piauí |
1919 | Surge boi-bumbá Garantido |
1919- 21 | Período da existência do boi-bumbá Pai do Campo |
1922 | Surge o boi Galante |
1925 | Surge o boi-bumbá Caprichoso |
Leia mais
#Toadas homenageia Raimundinho Dutra e faz passeio histórico
Fotos: divulgação