Eunice Paiva, a memória que a ditadura não calou

Por tantas virtudes femininas, é que sua trajetória merece toda reverência, respeito e admiração do cinema, da literatura, da política, dos homens e mulheres, dos brasileiros e do mundo.

Eunice

Bruna Lira, doutoranda

Publicado em: 28/02/2025 às 06:00 | Atualizado em: 28/02/2025 às 08:42

Ainda estou aqui? Quem está aqui? Nós? Eles? A velha ditadura militar? A voz da nação brasileira? A força vital de uma mulher que resistiu a tantas dores? Ou um cinema que nasce outra vez? Talvez nos pareça complexo demais abordar um assunto com inúmeras camadas sociais, políticas e culturais, sobretudo em um novo momento republicano, com tamanha imersão na era digital.

O que o cinema de Walter Salles (2024), acompanhado da literatura de Marcelo Paiva (2015), nos traz é um banho de água fria, um choque de realidade que jamais deveria ser cogitado: a sua dizimação jamais deveria ocorrer outra vez.

Homens e mulheres, jovens e idosos, autoridades e população brasileira jamais podem esquecer a crueldade nacional a partir de abril de 1964. Não dá para fingir que nada aconteceu. Mas, é claro que quem sofreu na pele não vai esquecer. Quem chorou por anos, quem não enterrou seu ente, quem não soube notícias, quem não sabia como viver, jamais vai esquecer.

Essa cicatriz foi se formando por anos, como resposta do organismo a um trauma. E como elaborar isso em meio ao caos? Só podia ser pela força vital de uma mulher que fez de suas dores físicas e políticas a resistência para enfrentar a guerra nacional. A luta não era só sua e de seus filhos, era da família brasileira. Só podia ser, outra vez, pela arte, pela câmera do cinema brasileiro, pelas histórias dos rastros que a tragédia deixou.

Cinco filhos para terminar de criar, buscar saber o paradeiro do marido, resolver as questões da casa, pagar as contas e ainda lidar com o sofrimento silencioso.

Teríamos nós a mesma força de Eunice Paiva, por ela, pela família e pela nação?

Eunice

Não estamos falando de classe social, não estamos classificando quem deve sofrer mais ou menos. Pelo contrário, estamos apontando e renunciando a este incontestável regime que ceifou milhares de vidas, ferindo injustamente tantos brasileiros.

Além disso, ela contestou o patriarcado saindo de seu lar para estudar o que estava acontecendo lá fora, para confrontar o regime aniquilador e para defender os oprimidos.

Conquista

O sorriso seguido de lágrimas guardadas por anos veio quando Eunice recebeu, em 2014, a certidão de óbito de Rubens Paiva, reconhecendo que a morte do ex-deputado fora causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964.

Movida por sua bravura, resiliência e resistência, a sociedade brasileira se viu contemplada com alguma resposta.

Eunice

Resultou na resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de dezembro de 2024, que determinou a correção dos registros de óbito de vítimas da ditadura militar. Anteriormente, o documento, emitido em 1996 após anos de esforços de Eunice, indicava apenas o desaparecimento de Rubens Paiva desde 1971.

Sua atuação influenciou, de certa forma, e, mais adiante, o governo Dilma na criação da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012 para investigar e reparar as atrocidades cometidas contra os direitos humanos entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, priorizando as violações da última ditadura militar (1964-1985).

Luta indígena

Parecia que sua contribuição política não havia sido suficiente. No entanto, ela queria mais. Assim, aos 47 anos, decidiu defender os direitos dos povos originários do Brasil. Foi então que ingressou na faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, em São Paulo, a partir de 1973. Além disso, foi uma das pioneiras no uso de argumentos jurídicos para fortalecer a luta indígena. Seus discursos, por sua vez, giravam em torno da expropriação sistemática de terras, do extermínio de povos indígenas, da falta de proteção legal dos direitos indígenas, da violação de direitos humanos e da discriminação racial. A ditadura tentou silenciá-la, mas a história gravou seu nome.

Porém, parece que, no fim de tudo, a vida não foi tão generosa com ela. Depois de se dedicar aos filhos, especialmente ao filho Marcelo Paiva que ficou tetraplégico após quebrar a quinta vértebra cervical em um acidente de mergulho em 1979, Eunice teve que conviver por mais de 14 anos com a doença de Alzheimer, um mal que castiga a memória e assombra o horizonte das lembranças.

Por tantas virtudes femininas, é que sua trajetória merece toda reverência, respeito e admiração do cinema, da literatura, da política, dos homens e mulheres, dos brasileiros e do mundo.

Cinema

É no cinema brasileiro que sua força vital e seu empoderamento feminino ganham ainda mais expressividade, aclamação e sororidade. Mas não apenas pelo compadecimento, como o sistema patriarcal nos ensinou a ver, e sim como um compartilhamento de experiências em períodos sombrios para homens e mulheres, nos quais o sofrimento se tornou incalculável.

A arte brasileira, por meio da atuação da ilustre atriz Fernanda Torres, incorporou e transmitiu ao mundo as cicatrizes da família brasileira de um jeito sutil, entranhando-se nas emoções de muitas gerações, questionando as estruturas políticas e refletindo a vida.

Eunice/Fernanda

Interpretou mais que uma personagem. Interpretou a angústia, o sofrimento, a vida, o tempo e repugnou o sistema. Vestiu-se com o seu melhor figurino e contou a história que muitos se negam a escutar.

O cinema brasileiro, assim como as outras artes, também foi vítima do golpe militar, mas ele, a música, a pintura e a literatura resistiram e continuam vivos, prontos para serem apreciados por seus amantes e para promover a democracia.

Como bem disse Fernanda Torres: “A vida presta”. E o Brasil? Também presta.

Eunice Paiva existe em nós.

O cinema brasileiro está vivo.

O Brasil presta!

Não à anistia, ditadura nunca mais!

Foto: reprodução