É tempo de retomada!

A antropóloga Dassuem Nogueira destaca: 'as toadas estão recheadas de referências acadêmicas, de movimentos sociais, políticas e musicais”'. Leia no artigo sobre o álbum 2025 do Caprichoso.

É tempo de retomada!

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 14/04/2025 às 15:44 | Atualizado em: 14/04/2025 às 16:41

O boi-bumbá Caprichoso lançou, na noite do dia 10 de abril, o seu álbum nas plataformas digitais. O trabalho é composto por 23 toadas e um poema de abertura, “O levante da vida”.

Em tese, a toada é um elemento que se completa na arena. Contudo, as toadas de boi Caprichoso têm cumprido a função de roteiro, deixando claro o que será executado na arena e em quais termos conceituais.

E de trilhas, pois a maioria das toadas tem um efeito de sons e arranjos capazes de criar ambientes para as execuções na arena.

As toadas estão recheadas de referências acadêmicas, de movimentos sociais, políticas e musicais. A começar pela toada tema, “É tempo de retomada” (Ericky Nakanome, Marcos Moura, Moisés Colares e Guto Kawakami), que é homônima da obra literária de Truduá Dorrico, escritora do povo macuxi.

O primeiro verso da toada tema, “Caprichoso é o boi do povo, que não espera acontecer”, faz referência ao verso emblemático de Geraldo Vandré “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, hino de resistência contra a ditadura militar no Brasil.

A fórmula de criar pontes de comunicação fácil com o universo dos jurados têm feito o Caprichoso campeão nos últimos anos e pode leva-lo ao inédito tetra.

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A retomada

Itg’a (se pronuncia itigã) é o termo usado para as urnas funerárias em língua munduruku.

Durante o processo de licenciamento para a construção da hidrelétrica Teles Pires, na divisa do Pará com o Mato Grosso, em 2014, doze itg’as foram retiradas sem autorização de um cemitério, antigo e sagrado, e levadas para o Museu de História Natural de Alta Floresta, no Mato Grosso.

Em 2013, Karobixexe, conhecida em português como a Cachoeira das Sete Quedas, o portal sagrado que levava os espíritos para o mundo dos mortos, foi dinamitada. O local era considerado também como a “morada dos peixes”.

Após essas e outras violências, na véspera do Natal de 2019, setenta indígenas mundurukus ocuparam o Museu de História Natural de Alta Floresta para, justamente, retomarem suas Itg’as.

Esse é o tom do ritual Itigã: contar o processo da morte para os mundurukus ao denunciar uma violência a partir de um evento contemporâneo.

A toada “Itigã, retomada dos espíritos” é dos compositores Ronaldo Barbosa e Ronaldo Barbosa Jr.

Esse é o tom de todo o álbum do boi Caprichoso.

O antigo e o novo

“Majés, senhoras da cura”, dos compositores Geovane Bastos, Ligiane Gaspar e Júnior Dabela, provavelmente, defenderá o item figura típica regional.

Trata-se de um outro lugar, onde se pode contar algo antigo, e bastante representado no festival, a partir de um conceito contemporâneo.

Majé tem sido o termo usado pelos povos indígenas do baixo rio Tapajós, no Pará, para se referir às especialistas da cura do gênero feminino, comumente invisibilizadas pelo olhar colonial que legitimou com liderança espiritual apenas a figura do pajé ou sacaca, no caso de comunidades não indígenas.

A toada está em ritmo de carimbó, típico da região.

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Outras retomadas

‘Meu bom vaqueiro”, dos compositores Otacílio Júnior, Bené Siqueira e José Ribeiro, por sua vez, é uma retomada da figura do vaqueiro tal como representado no auto do boi em sua versão parintinense, “o vaqueiro de fama real”.

A toada “Kizomba – festa da retomada”, exalta territórios negros, até, recentemente não reconhecidos como, também, de pretos, como o da comunidade do Mocambo do Arari, interior de Parintins.

Kizomba é uma palavra de um dialeto falado em Angola, o quimbundo, que significa festa e resistência E que, também, deu nome a um emblemático desfile da escola de samba carioca Vila Isabel, em 1988.

“A toada Amazônia de pé”, dos compositores Thaís Kokama, Adriano Aguiar e Fredson Lima, toca em um tema que tomou conta da imprensa e debates acadêmicos, nacional e internacionalmente: a grande seca da Amazônia, em 2024.

E aqui fala da retomada da água, fundamental para todos os viventes amazônicos.

A abordagem do tema no álbum do boi Caprichoso, além de facilitar a comunicação com seus julgadores, passa aos que apreciam a toada e o festival, mensagens atualizadas sobre temáticas de grande valor da Amazônia para o Brasil e o mundo.

Dos 43 compositores do álbum 2025, são 6 as mulheres, sendo uma indígena:

  • – Adriana Cidade (“O couro vai comer”),
  • – Vanessa Aguiar (“Palmares, uma invasão Caprichoso”),
  • – Claúdia Helen (“Kizomba, festa da retomada”),
  • – Naymê de Souza (“Eu sou Marujada”),
  • – Ligiane Gaspar (“Majés, senhoras da cura”),
  • – Thaís Kokama (“Amazônia de pé”).

Destaca-se ainda um compositor indígena: Thiago Yawanawá (“Êxtase yawanawá”).

*A autora é antropóloga.

Foto: reprodução/rede social/boi Caprichoso