É preciso reformar o Estado brasileiro (parte 1)

É preciso reformar o Estado brasileiro, criar e/ou aperfeiçoar a legislação para tornar as instituições cada vez mais democráticas e republicanas

É preciso reforçar o estado brasileiro

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 10/09/2022 às 00:01 | Atualizado em: 09/09/2022 às 23:38

Conforme já escrevi nesta coluna, a eleição, a festa da democracia, se aproxima. Todavia, para que o resultado das urnas seja respeitado e a soberania popular mantida, o Estado brasileiro precisa urgentemente passar por mudanças estruturais, sem as quais nunca haverá, de fato, democracia em nosso país.

A primeira mudança deve ser feita no âmbito da Procuradoria Geral da República (PGR), na forma de escolha do procurador-geral. Em determinados temas, o poder do procurador é quase imperial e divino. À guisa de exemplo, em caso de infração penal comum do(a) presidente da República, apenas o procurador-geral pode instaurar o inquérito e acusá-lo. Ocorre que esse mesmo procurador é escolhido pelo próprio presidente da República, a partir de uma lista tríplice, que vem do Ministério Público (MP).

No meu entendimento, esse processo fragiliza a democracia e a República brasileira, deixando-a à mercê da sorte, pois, caso chegue à presidência da república um cidadão ou uma cidadã de caráter ilibado, laureado(a) pelo espírito público, ético(a), democrático(a) e republicano(a), ele(a) certamente tratará a escolha do procurador-geral com isonomia, respeitando a lista tríplice do MP e tendo com este uma relação institucional e republicana. Porém, se isso não ocorrer, a chance de conluio entre as instituições é enorme.

Para mim, a partir da lista tríplice do MP, a escolha do PGR deveria ocorrer seguindo deliberações de um conselho, sendo, o mais indicado para isso, o Conselho da República. Afinal, trata-se de órgão superior de consulta do presidente da República formado por representantes dos três poderes e da sociedade civil.

Impeachment

A segunda mudança que precisa ser feita diz respeito à abertura de processo impeachment contra o(a) presidente quando este(a) incorrer em crime de responsabilidade. A Constituição Federal (CF) de 1988, em seu Art. 85, define, de forma bem clara, quais são os crimes de responsabilidade que o(a) presidente da República pode ser enquadrado.

Entretanto, o parágrafo único do Art. 85 afirma que os crimes previstos no artigo “serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento”. Ocorre que tal lei complementar nunca foi feita, sendo aplicada nos dois casos de impeachment que ocorreram no país a lei nº 1.079 de 10 de abril de 1950.

Com efeito, a mesma CF, em seu Art. 51, afirma que “compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o Presidente e o Vice-Presidente da República e os Ministros de Estado”.

Neste momento, temos um impasse, pois na ausência de uma lei específica para o impeachment, as representações da sociedade civil que chegam à Câmara Federal – casa do povo – se apoiam no Art. 14 da lei nº 1.079, que traz a seguinte redação: “é permitido a qualquer cidadão denunciar o Presidente da República ou Ministro de Estado, por crime de responsabilidade, perante a Câmara dos Deputados”.

Nesse cenário, de acordo com o professor de Direito Constitucional Wellington Antunes, na ausência de uma legislação específica, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que “o presidente da Câmara dos Deputados tem competência para fazer o exame inicial da representação [Art. 14], podendo, inclusive, rejeitá-la, caso entenda que a acusação é patentemente inepta ou despida de justa causa, sujeitando-se, contudo, ao controle do Plenário da Casa”.

No meu entendimento, o STF deveria ter seguido o que diz o Art. 51 da Constituição, onde está claramente assinalado que “compete privativamente à Câmara dos Deputados autorizar […]” tal processo, numa clara alusão ao coletivo, à plenária.

O Art. 51, portanto, não atribui ao presidente da Câmara a prerrogativa de autorizar monocraticamente a instauração de processos contra o(a) presidente da República. Nesse sentido, à semelhança do que ocorreu em 2016 e em outros momentos, o STF legislou, ao invés de aplicar a lei relacionada ao tema do impeachment.

Em resumo, penso que é preciso haver uma lei específica acerca dos processos relacionados a crimes comuns e a crimes de responsabilidade dos(as) presidentes da República. Isso é necessário porque não é legítimo que apenas um deputado federal, no caso, o presidente da Câmara, tenha, à semelhança do PGR, poderes quase imperiais para decidir, monocraticamente, se aceita ou não uma representação contra o(a) presidente da República e dê sequência aos trâmites do processo de impeachment.

Entendo esse tipo de situação como um excesso de poder nas mãos de uma única pessoa, algo diametralmente oposto à essência da democracia. Em uma República democrática não pode haver poderes imperiais para quem quer que seja. Afinal, “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”.

Nesse sentido, é preciso reformar o Estado brasileiro, criar e/ou aperfeiçoar a legislação para tornar as instituições cada vez mais democráticas e republicanas. Somente assim o desejo da(o) cidadã(o), manifesto nas urnas a cada eleição, de fato, fará sentido.


*Sociólogo