Dona G. e a desindustrialização brasileira
Dona G possuía mansões, carros de luxo, iates; ela tinha uma fábrica, que faliu quando Collor abriu o país aos importados, assim como Bolsonaro quer fazer hoje

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 30/07/2022 às 04:51 | Atualizado em: 30/07/2022 às 10:09
A coluna de hoje trará uma história com mais de 30 anos, mas que poderia facilmente ser vivida e contada atualmente. Na semana passada, conheci a dona G., cujo nome abrevio para preservar a sua identidade. Em uma conversa descontraída, mas franca, ela me contou um pouco de sua vida e de como perdeu a sua fábrica de polietileno que ficava na cidade de São Paulo.
Até o início dos anos 1990, as coisas iam muito bem para a dona G, já que desde a década de 1980, o polietileno e seus derivados estavam em franca expansão no Brasil. Com o êxito da fábrica, ela e sua família possuíam um alto padrão de vida, com imóveis, carros, iate, casa de campo, mansão em bairro nobre da capital paulista, dentre outros bens e confortos que a riqueza podia proporcionar.
O Brasil Collor de Mello
Todavia, eles encontraram uma pedra pelo caminho, uma pedra chamada Fernando Collor de Melo. A abertura irresponsável da economia brasileira, feita sem um planejamento adequado por aquele governo, levou a indústria nacional a uma realidade que não estava preparada para enfrentar.
É de conhecimento geral que a abertura brusca do mercado brasileiro foi desastrosa para a indústria nacional, visto que muitas fábricas fecharam, dentre elas, a de polietileno da dona G. “Não havia a menor condição de competir com o polietileno importado, que passou a inundar o mercado nacional”, declarou.
Praticamente do dia para a noite, a fábrica de dona G. ficou sem clientes. “Nós lutamos muito, fizemos empréstimos, cortamos custos, reduzimos a folha de pagamento, financiamos dívidas, mas nada disso adiantou”, contou a jovem senhora. Sem clientes e com custos de produção maiores e enormemente diferentes daqueles praticados no estrangeiro, a saída foi fechar o negócio.
A história de dona G. certamente não é a única. O Brasil, cuja economia entre 1930 e 1980 foi a que mais cresceu no mundo, vem se desindustrializando de maneira absurda, principalmente nos últimos 20 anos. De 2016 para cá, tivemos os piores resultados no parque industrial nacional – que surpreendentemente ainda é o maior da América Latina.
Mas esse processo é compreendido de formas diferentes por parte de economistas e analistas políticos, dependendo da escola a que pertencem. Economistas ortodoxos, por exemplo, tendem a negar o processo contínuo de desindustrialização do país.
Causas e efeitos
Para muitos deles, conforme registrado por José Oreiro e Carmem Feijó no texto Desindustrialização: conceituação, causas, efeitos e o caso brasileiro (2010), “as mudanças macroeconômicas pelas quais o Brasil passou pós-1999, com a implementação do tripé metas de inflação-superávit primário-câmbio flutuante, teria permitido um crescimento bastante robusto da produção industrial, eliminando assim o fantasma da desindustrialização”.
Não há espaço, aqui, para aprofundarmos esse debate, contudo, de forma objetiva, não seria sem sentido imaginar que o entendimento de dona G. difere bastante dos economistas ortodoxos. Eu também discordo deles, afinal, os números do IBGE revelam que, a partir do ano 2000, o processo de desindustrialização do país assumiu um caráter de continuidade, cada vez mais acelerado, tirando o peso da indústria na formação do Produto Interno Bruto (PIB).
À guisa de exemplo, a indústria de transformação, em 2020, contribuiu com vergonhosos 11,30%, considerando seu histórico, para a formação do PIB. É importante ser registrado que esse setor já chegou a contribuir com 24%, contraste que revela o tamanho e a natureza da tragédia nacional.
Influência no conhecimento
A indústria é fundamental para o desenvolvimento de uma nação. É nesse setor que ocorre a implementação de novas tecnologias, seja no processo produtivo em si ou na produção de novos materiais que servirão a outros produtos, como no caso da indústria química e siderúrgica.
Ademais, há também uma forte ligação do processo de industrialização com a formação universitária, pois é na indústria que estão os empregos que exigem maior tempo de formação e especialização, com a possibilidade, consequentemente, de melhores salários.
Essa área precisa de profissionais altamente qualificados, como engenheiros ambientais, de alimentos, elétricos e mecânicos, bem como químicos, farmacêuticos, biólogos, nutricionistas, designers, psicólogos, assistentes sociais, técnicos em informática, em segurança do trabalho, dentre outros.
Perseguição ao PIM
A indústria, portanto, movimenta muitos setores e cria cadeias produtivas com capacidade de dinamizar toda a economia de uma cidade e região. O maior exemplo disso é o Polo Industrial de Manaus (PIM), que dinamiza a economia não apenas da cidade de Manaus, mas de toda a Amazônia Ocidental, ainda que venha sendo irresponsável e criminosamente perseguido pelo atual governo.
Para aumentar o nosso drama, paradoxalmente, enquanto a indústria nacional encolheu fundamentalmente na pandemia sob o olhar inerte do governo federal, o agronegócio, no mesmo período, se expandiu e assumiu o protagonismo da formação do PIB brasileiro. Em 2020, a participação desse setor foi de 27,4%, a maior em duas décadas.
Entretanto, alguém poderia questionar minha crítica e dizer: mas isso é muito bom! Mas não é bem assim. Certamente, todos os setores da economia nacional são importantes e devem ser ajudados a crescer, porém, não podemos voltar à condição de séculos anteriores quando éramos apenas “uma grande fazenda”. É importante lembrar-se de que o Brasil passou séculos assentado em monoculturas, das quais o café foi a mais proeminente.
O Brasil de Getúlio Vargas
Com efeito, o setor industrial só veio a se desenvolver de fato, levando nosso país definitivamente para o clube dos Estados capitalistas modernos e industrializados, a partir de 1930, com Getúlio Vargas e a sua política nacional-desenvolvimentista. Nesse cenário, o eixo de criação de indústrias de base foi extremamente exitoso.
Nesse sentido, um retorno “à grande lavoura”, por mais importante que isso seja para a geração de divisas ao país, não deixa de ser um grande salto para trás. Portanto, é condição sine qua non a elaboração de um grande projeto de reindustrialização nacional, tarefa árdua para o próximo governo federal.
O Brasil precisa de pessoas que ascendam socialmente a partir de seus negócios individuais ou familiares e não o contrário, como foi o caso de dona G., que perdeu praticamente tudo sem ter tido culpa nenhuma, junto com centenas de outros(as) brasileiros(as). Ela apenas foi vítima de um governo corrupto, incompetente e traidor dos interesses nacionais. Analisando nossa realidade econômica, haveria alguma semelhança com a atualidade?
Sociólogo
Foto: BNC AMAZONAS, em 22 de novembro de 2018