Diário de uma quarentena | 18º dia, 7 de abril – Tudo parece normal
"Nada tão vazio quanto o vazio do ar que não chega para aqueles que sofrem e pelo vazio deixado por aqueles que pereceram até aqui"

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*
Publicado em: 07/04/2020 às 22:38 | Atualizado em: 16/04/2020 às 19:49
Hoje é terça-feira. São 19h40
O Amazonas já tem 636 casos confirmados de coronavírus e conta 23 mortos pela doença.
Manaus, a cidade estado, também se tornou enorme nos números da doença. São 560 casos confirmados.
O restante está no interior.
Os números de Manacapuru, na região metropolitana, já se sobressaem aos dos demais municípios.
Ali, já foram diagnosticados 42 casos. Depois desse município, vem Itacoatiara com 9 casos e Santo Antonio do Içá, com 7.
Minha cidade, Parintins, travou os números. Parou em quatro. Lá, para tentar conter o avanço da peste, o prefeito lavou praças, repartições públicas, decretou toque de recolher e ameaçou demitir seus auxiliares que comungassem do pensamento do presidente da República, defendendo a volta do povo às ruas.
Preocupação nacional
O Estado virou preocupação nacional.
Na conversa diária do ministro da Saúde, Amazonas e Manaus foram citados várias vezes.
A maioria das citações foi para mostrar preocupação com a disseminação acelerada do mal.
A conversa dele também tratou de um experimento que é desenvolvido no hospital Samel, uma espécie de cápsula respiradora, que evita procedimentos invasivos nos pacientes acometidos pelos vírus.
Pelo que demonstrou, o invento amazonense poderá ser adotado em todo o país.
Flagelo mundial
No mundo todo, 82.020 (21h28) pessoas morreram até aqui.
Na escalada de perdas, os EUA se aproximam dos primeiros do triste ranking, Itália e Espanha, em número de mortos.
Enquanto na Itália morreram 17.127 cidadãos e na Espanha 14.045, na nação mais poderosa do mundo, a contagem já chega a quase 13 mil mortos (12.844, às 21h32).
Solidariedade
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, externou solidariedade ao primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que está infectado com a Covid-19, foi internado e está na UTI.
Em comum, os dois desdenhavam do potencial do coronavírus e defendiam a volta das pessoas ao trabalho para não afetar a economia.
Boris mudou de posição. Bolsonaro ainda não.
Tudo parece normal
Corro a cidade, que ainda corre, corre agitada; cidade que se atropela.
O comércio não para. Alguns param! Poucos, para amontoar muitos.
Parece tudo normal.
Lojas de portas entreabertas, que fingem estar fechadas e gente amontoada, fingindo a dispersão. Exposta!
Bancos abertos, bancos públicos e privados.
Protegem-se do vírus.
Controlam as portas para se proteger.
Expõem a risco a multidão que se enfileira à beira da rua.
Parece tudo normal.
O mercado fechou, mas, ao lado, a feira abriu.
Abriu sem controle, sem cuidados.
Só há pressa.
Parece tudo normal.
As paradas de ônibus não param.
A vida que não quer parar é parada por uma vida invisível e ainda indomada.
Parece tudo normal.
Mas já existem vazios. Alguns.
Alguns sopros de esperança de que essa gente compreenderá o perigo, senão, por si, mas por amor ao outro.
Por amor ao médico, ao enfermeiro, ao técnico, ao maqueiro que trocaram suas casas pelo hospital e que poderão lhes fazer falta quando deles precisar.
Parece tudo normal.
E agora, depois de correr a cidade o dia todo, os vazios incomodam ainda mais, porque são poucos.
E nada tão vazio quanto o vazio do ar que não chega para aqueles que sofrem e pelo vazio deixado por aqueles que pereceram até aqui.
Pereceram para clamar uma pausa, mas o clamor, incompreendido, refuga nos ouvidos daqueles que se sentenciaram se expor ou morrer por necessidade. Ou pelo bolso.
E nada tão irônico pensar nisso agora, porque, embora tudo pareça normal, nada poderão fazer.
Nada poderá fazer porque a loja de roupa de marca não funciona, os shoppings não funcionam, os bares não abrem.
A vida mudou, embora pareça normal.
Dois médicos; dois textos
O primeiro é de um médico, que tem conversado com os brasileiros quase todos os dias: Luiz Henrique Mandetta, que disse hoje:
“Se eu estivesse em Manaus, estaria extremamente preocupado”.
O outro é do cirurgião cardiovascular Silvano Baraúna, que escreveu em seu Facebook:
“Boa tarde!
Saindo do Hosp Fca Mendes, após cirurgia, vejo um transito normal, circulação normal de pessoas…
Sabemos de vários colegas médicos enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, internados, intubados e graves, alguns falecendo… e tudo parece normal em Manaus.
Muitas vezes o “não saber”, “não ter noção”, ignorar mesmo, passa a ser um muro.
Um dia escreveremos mais sobre tudo que está acontecendo.
Um grande amigo me ligou, quase chorando, pra falar de outro amigo em comum em vias de ser intubado… isso parece um pesadelo. Um pesadelo.
A quem puder entender, procurem se proteger!”
*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas
Foto do autor, em 7 de abril de 2020