Diário de uma quarentena | 5º dia, 25 de março – “A sinfonia voltou”
Neuton Corrêa observa que sem o barulho de carros, de gente e fábricas, paradas por causa da pandemia do coronavírus, o canto dos pássaros volta a aparecer na cidade

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*
Publicado em: 25/03/2020 às 20:00 | Atualizado em: 28/03/2020 às 11:44
Hoje é quarta-feira. São 17h42.
O Amazonas conta 54 infectados pelo novo coronavírus.
A contagem começou há nove dias, desde o registro do primeiro caso, no dia 13 de março.
De lá para cá, o diagnóstico de novas contaminações aumentou aceleradamente.
Médicos amigos meus dizem que o problema só está começando.
Nenhum dos que eu conheço arrisca em chamar a praga de gripezinha.
Só a insanidade humana é capaz de classificá-la assim neste momento que dela pouco se sabe.
Isso faz eu me aprofundar ainda mais no meu isolamento social.
Comida ok
Hoje não tive problema com a comida.
A Darci deve ter lido o que eu escrevi ontem, sem que ela soubesse.
No café, tirou um mamão da geladeira e perguntou se queria que cortasse.
Disse-lhe que não.
O mamão estava com a casca bem escura, mas a polpa, maravilhosa.
No almoço, ela fez peixe e peito de frango.
O peixe foi uma caldeirada de tucunaré, bem equilibrada no tempero.
O frango, grelhado, estava cheirando de longe.
Senti um cheirinho de manteiga, mas a gordura não apareceu no prato.
Porém, não comi sem levar uma cutucada dela:
“Não era assim que queria?”, perguntou.
E eu respondi: “No ponto”.
Carne ok
No começo da tarde, meu estoque de carne foi reposto.
Encomendei do Júnior, meu vizinho, que viajou no começo da nossa quarentena para o Careiro da Várzea (AM).
“Lá a carne é barata, vizinho. Não vai querer que eu traga?”, perguntou-me na quarta-feira, dia 18.
E ele voltou com uma carga que acho que dará para umas três semanas, se a comida continuar a ser feita como hoje.
Ah! Deixa eu falar um pouco mais do Júnior.
Ele é esposo da Rosana.
A Rosana é enfermeira e, obviamente, circula no ambiente que mais os coronavírus gosta: os hospitais.
Deus lhe proteja, vizinha.
DJ Kleyton ok
O DJ Kleyton, que estava me preocupando com suas saídas nos primeiros dias da quarentena, está no segundo dia sem sair de casa.
Ontem, pedi que arrumasse o depósito do BNC AMAZONAS.
Hoje, que arrumasse os exemplares que restam da “Poesia do Homem Cavalo”, último livro de contos que publiquei em 2012.
Ainda têm três caixas, que guardo com muito carinho.
E nesse quesito me senti até envaidecido quando o Rhaygner, que ajudava o DJ, perguntou:
“Foi o senhor que escreveu esse livro, tio”.
E eu, quase sem consegui esconder o orgulho, respondi tentando não mostrar importância ao fato: “sim”.
Primeira palestra on-line
Antes da pandemia do novo coronavírus chegar ao Amazonas, combinei com a professora Liege Albuquerque, da Fametro, uma conversa com os alunos dela.
Estava tudo certo.
Combinamos que a turma iria para a sede do BNC AMAZONAS e que lá iria contar para os estudantes de Comunicação como surgiu o site, os desafios da atividade e falar um pouco dos meus 32 anos de jornalismo.
Putz! Trinta e dois anos! Passou tão rápido!
Vamos lá.
Mas não deu. O vírus chegou mandando todo mundo se recolher, evitar reuniões e tudo mais que produz aglomerações, senão, ele pega.
Então, veio a solução da professora.
“Neuton, é possível uma palestra online”.
E eu, no ato:
“Claro que sim”.
E foi assim, neste sétimo dia de quarentena, que aconteceu minha estreia como palestrante virtual.
Foi bom. Deu 26 pessoas assistindo, uma sala repleta.
Com a ajuda do meu filho, Neuton Segundo (ele já está 100%), que também faz parte do grupo da minha quarentena, apesar de cumpri-la da casa dele, transmiti a conversa direto da sede do BNC.
Montei um cenário virtual, no qual eu parecia estar numa das salas de aulas da Fametro.
A Liege acreditou nisso. Depois, me contou.
Em seguida, tirei a imagem e lhe mostrei que era truque de TV e passeei com eles pela redação e a sala de operação de transmissão do site.
Acho que foi bom. Pra mim, foi, mas teve aluno que escreveu que gostou.
De boa, valeu!
Valeu, professora Liege; valeu, professora Leila.
Os passarinhos voltaram; a sinfonia também
Mas hoje aconteceu uma coisa que eu nunca mais vou esquecer, se eu sobreviver à pandemia, se ela bater à minha porta: do canto dos passarinhos no BNC.
Eram quase duas da tarde.
Eu havia chegado para organizar a palestra on-line.
Foi nesse momento que notei um raro silêncio até onde os meus ouvidos alcançavam.
Não havia barulho de carro, de gente, nem das fábricas instaladas por perto.
Não era um simples silêncio.
Era um silêncio demorado. Nem barulho de moto apareceu, porque as descargas mais barulhentas de moto costumam aparecer quando não se escuta nada.
Observe isso quando você acordar no meio da noite.
Foi nessa hora que eu ouvi cantos.
Eles vinham de todos lados: uns mais longe, outros mais perto; uns mais graves; outros mais agudos.
Estavam organizados em naipes.
E todos numa frequência regular, que parecia estar sob a regência de alguém.
O Segundinho entrou e eu pedi pra ele ouvir e apreciar o resultado do silêncio que o coronavírus acaba de impor às cidades.
*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas
Leia os outros capítulos
Diário de uma quarentena | Primeiro dia, 21 de março – “Meu filho”
Diário de uma quarentena | Segundo dia, 22 de março – “Meu violão, minha angústia”
Diário de uma quarentena | Terceiro dia, 23 de março – “Filosofia e fé”
Diário de uma quarentena | 4º dia, 24 de março – “Adeus, conterrâneo!”