Diário de uma quarentena | 17º dia, 6 de abril – Remédio pra piolho
"Como os salões estão fechados, poderemos precisar em breve"

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*
Publicado em: 06/04/2020 às 21:37 | Atualizado em: 06/04/2020 às 21:37
Hoje é segunda-feira. São 18h56.
O Amazonas tem agora 532 pessoas infectadas com o coronavírus, 115 casos novos só em um dia.
O número de mortos subiu para 19.
A peste já chegou a 12 municípios. Os dois últimos foram Jutaí e São Gabriel da Cachoeira, onde vive a maior diversidade étnica e cultural do planeta.
Golaço dos hermanos
Tenho registrado neste diário os países com o maior número de infectados.
Nesse caso, os EUA continuam liderando. Até aqui, são 364.723 infectados, confirmados.
Quase 11 mil cidadãos norte-americanos já morreram (10.781, às 19h18).
Mas hoje olhei um pouco mais pra baixo do ranking mundial da doença.
Quanta inveja dos argentinos e dos uruguaios.
Enquanto o Brasil figura na 15ª posição com infecções, 12.056, e 553 mortos, a Argentina está na 51ª colocação com 1.554 infectados e apenas 48 mortes e o Uruguai, na 84ª posição, com 406 diagnósticos e somente seis óbitos.
Os hermanos deram um drible nos brasileiros e fizeram um golaço, num jogo no qual ganha mais quem perde menos.
No Uruguai e na Argentina, os técnicos dessas seleções entenderam que o jogo era de retranca, de segurar as pessoas em casa.
O nosso técnico continua subestimando a doença e mandando todo mundo para o ataque e muitos não estão conseguindo chegar ao meio-campo.
Repressão
O Estado passou a usar a força policial para tentar evitar as aglomerações em Manaus, onde se concentra a maior parcela dos infectados.
Viaturas, policiais e carros de som foram colocados nas ruas para tentar conscientizar as pessoas do perigo.
Perdi mais um amigo
Depois do Geraldo Sávio, primeira vítima fatal da praga, hoje registro a morte de mais um amigo, este de infância, Beto Sinimbu.
Eu havia acabado de publicar o diário do domingo, quando o Massilon Cursino, de Parintins, me avisou com um print do Facebook:
“Nosso vizinho morreu”.
Há uma semana, ele estava bem, rezou um Rosário com a dona Maria, mãe dele, transmitiu pela internet; dias depois, foi internado às pressas com suspeitas da doença e morreu no Domingo de Ramos.
O Beto era o cara mais elegante da minha geração, ali no Bairro da Beleza. Só ia para a missa alinhado e combinando camisa, calça e sapatos bicos finos e lustrosos.
Mais de 30 anos se passaram e, por conta de sua morte, dei uma olhada nas redes sociais dele. As fotos do Beto mostram que a elegância continuava a mesma, mas acrescentou os óculos escuros ao estilo.
Vou lembrá-lo também pelas vezes que atrapalhou a brincadeira do garrafão.
Quando começávamos a brincar, ele surgia do nada pra chutar a garrafa.
Parou com isso no dia que enchemos o garrafão com piçarra.
Nunca mais.
Descanse, meu vizinho! Força, dona Maria!
Remédio pra piolho
Carlos Kaita é líder do Cacique News, grupo de WhatsApp com o qual mais interajo.
Surpreendi-me com ele em casa, cedo, logo depois da rádio.
Como conhece a casa, não bateu à porta da frente.
Barulhou no portãozinho da cozinha, que faz vista para a rua. Minha casa é de esquina.
Estava acompanhado do Juliano Petro Velho, também do grupo.
Os dois estavam de máscara.
O Carlão foi passando para pia, lavou as mãos e os braços, demoradamente, e sentou-se à cabeceira de uma enorme mesa de angelim que construí há 19 anos quando cheguei aqui nesta casa, na Cidade Nova.
Eu sentei à cabeceira oposta e o Petro Velho, no meio.
Eles riram da queixa da Darci de que eu não registro as discussões que estamos tendo nessa quarentena.
Ela, certamente, se referia à tarde de sábado passado, quando perdi a paciência.
Na hora da atualização dos dados do coronavírus, ela se pôs a falar, tirando minha concentração.
Ficamos um dia sem dirigir uma palavra um para o outro.
A conversa já se demorava e resolvi perguntar que bons ares haviam trazido eles em casa.
O Carlão jogou à mesa duas caixas de remédio e disse:
“Esse remédio é pra piolho, mas já estão falando que está sendo usando em pacientes com a Covid-19. Guarda aí, se realmente funcionar e você precisar, já tem em casa”.
E sorrindo, repliquei:
“E, se eu não precisar?”
“Usa pra piolho, porque, como os salões estão fechados, poderemos precisar em breve”.
*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas
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