Diário de uma quarentena | 34º dia, 23 de abril – Morrer é morrer
"Falavam em cremação do ente querido e de mingau de banana com paçoca de ossos de índios falecidos"

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*
Publicado em: 23/04/2020 às 21:36 | Atualizado em: 24/04/2020 às 18:30
Hoje é quinta-feira. São 18h54.
Há oito dias, no capítulo 26 deste diário, mostrei minha preocupação com o excesso de aglomerações em Manaus.
A intuição dizia que, em uma semana, poderíamos viver uma explosão de contágios e mortes.
Coincidência ou não, os números de hoje fogem a tudo o que se registrava até ontem.
Recorde de novos casos e recorde de mortes.
Ontem, foram anunciadas 209 infecções, que já era um número alarmante. Hoje, são mais 409.
Ontem, foram anunciadas 13 mortes pelo novo coronavírus. Hoje, 28.
Nessa disparada, amanhã o Amazonas ultrapassa os 3 mil casos e pode chegar a 250 mortes, em um mês.
Recorde Nacional
O Brasil atingiu quase 50 mil casos de coronavírus nesta quinta-feira, dia 23.
Mas o que vai ficar marcado nesta data é a quantidade de óbitos num único dia: 407 mortes em 24 horas.
O maior número havia sido há seis dias, quando os óbitos pela doença foram de 217 perdas.
O Brasil segue falando em retomada da vida normal, apesar do vírus continuar contaminando e matando.
O governo central continua preocupado com a economia e volta a falar em plano para depois da pandemia.
O ministro da Justiça, Sérgio Moro, ameaçou deixar o governo.
23 de abril diferente
A pandemia provocou uma grande mudança aqui na vizinhança.
O 23 de abril já é o mais diferente de todos os outros 23 de abril que passei aqui no núcleo 2 da Cidade Nova nos últimos 18 anos.
De manhã, o cambono Tupy não soltou foguetes; a rua está tranquila e o batuque do terreiro da Mãe Emília silencia.
A umbanda respeita o vírus. É dia de São Jorge.
Morrer é morrer
Hoje, um comentário do prefeito de Manaus me fez lembrar do tempo que vivi em São Gabriel da Cachoeira, em 1989.
Ali, no alto rio Negro, onde está concentrada a maior diversidade étnica e cultural do mundo, prestei serviço militar obrigatório.
O quartel do Exército, então 5º Batalhão Especial de Fronteira, possuía três companhias: uma de Infantaria, onde a maioria fora recrutada em Parintins; a de Serviço, egressa de Itacoatiara; e a de Fronteira, formada por maioria indígena de várias regiões do noroeste do Estado.
Lá, meus colegas de farda, da Companhia de Fronteira, falavam de festa, festa fúnebre, de alegria quando tratavam de morte.
Falavam em cremação do ente querido e de mingau de banana com paçoca de ossos de índios falecidos.
Não me recordo detalhes, mas uma coisa dessas conversas nunca esqueci, quando diziam: “morrer é morrer”.
O máximo que avancei em decifrar essa filosofia encontrei no dicionário: morrer, verbo intransitivo.
Mas, o prefeito, diante da incapacidade do município de manter os enterros dos corpos das vítimas do coronavírus, sugeriu que os defuntos desta cultura sejam cremados.
A ideia, na sociedade em que vivemos, pode ser estarrecedora, mas os corpos se amontoam e os coveiros já estão cansados e também acometidos da doença.
O Amazonas está prestes a se despedir de seus entes queridos como há muito já fazem os povos que esta civilização condena.
O vírus que já mexeu com a política, com a ciência, com a medicina, com a economia, com a filosofia, revela-se também com uma discussão para a antropologia.
*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas
Arte: Alex Fideles