Cuidado com as evidências!
Neste artigo, o sociólogo Aldenor Ferreira adverte para formação de juízos precipitados que podem ocorrer a partir de disparos de notícias falsas

Neuton Correa
Publicado em: 02/10/2021 às 04:00 | Atualizado em: 01/10/2021 às 23:39
Aldenor Ferreira*
Em uma sociedade cada vez mais complexa, com demandas econômicas, políticas, sociais e ambientais que exigem soluções urgentes, somos constantemente levados à tomada de decisões baseando-nos nas evidências deixadas por determinados fatos.
Ocorre que as classificações imediatas ou evidências primeiras, como alerta o sociólogo Pierre Bourdieu, tendem à simplificação dos fenômenos, fatos ou eventos. Aliás, um dos grandes desafios das Ciências Humanas é justamente a superação dessas formas de classificação, da opinião e de pré-noções – sem aqui defender questionamentos infundados da ciência.
As classificações imediatas e as evidências primeiras, como observou Gaston Bachelard, são obstáculos epistemológicos ao avanço do conhecimento. E é sobre isso que escrevo hoje.
Na visão desses estudiosos, o concreto, ou seja, a realidade, aparentemente segura, mantém, em si, estruturas enraizadas que podem disfarçar alguns pontos, impedindo a compreensão clara dos fenômenos no tempo e no espaço. Ou seja, sempre há possíveis nuances de interpretação.
Recorrendo ao filósofo e sociólogo Karel Kosik, podemos compreender melhor o porquê do engano da evidência primeira, ou mesmo da falsa segurança dada pela “primeira impressão”, ideia que orienta as decisões de muitas pessoas.
Kosik, ao fazer uma abordagem dialética (que coloca ideias diferentes em conflito) da realidade, propõe um esforço para a superação dos fenômenos que se apresentam imediatamente. Essa discussão é feita no livro “Dialética do Concreto” (1963).
No início do primeiro capítulo, Kosik afirma que: “a dialética trata da coisa em si. Mas a coisa em si não se manifesta imediatamente ao homem”. Na sequência, ele diz:
“Captar o fenômeno de determinada coisa significa indagar e descrever como a coisa em si se manifesta naquele fenômeno, e como ao mesmo tempo nele se esconde. No mundo da pseudoconcreticidade, o aspecto fenomênico da coisa, em que a coisa se manifesta e se esconde, é considerado como a essência mesma, e a diferença entre o fenômeno e a essência desaparece. Por conseguinte, a diferença que separa fenômeno e essência equivale à diferença entre irreal e real, ou entre duas ordens diversas de realidade? A essência é mais real do que o fenômeno? A realidade é a unidade do fenômeno e da essência. Por isso, a essência pode ser tão irreal quanto o fenômeno, e o fenômeno tanto quanto a essência, no caso em que se apresentem isolados, em tal isolamento, sejam considerados como a única ou ‘autêntica’ realidade (KOSIK, 1976, p. 16).“
Noutras palavras, na relação do sujeito com o objeto, ocorre um aparente jogo de esconde-esconde, onde, nem a coisa em si e nem a sua representação manifestam-se claramente.
No primeiro caso, o objeto não se revela e, no outro, a sua representação, contraditoriamente, não é o que aparenta ser. Portanto, nesse jogo, os objetos do mundo fenomênico não manifestam com nitidez sua essência.
Ao analisar o movimento do real, Kosik coloca que o concreto é portador de uma processualidade produzida pelo fazer e refazer dos homens/mulheres dentro de determinados espaços e dentro de determinadas relações sociais.
Com efeito, se seguirmos apenas os nossos conhecimentos do dia a dia, não conseguiremos compreender os fenômenos, fatos ou eventos tais como eles de fato são. Temos acesso apenas às suas sombras.
Nas palavras de Kosik, para uma real compreensão, seria necessário um détour, ou seja, um desvio, um afastar-se da banalidade do cotidiano para, assim, mediante esse distanciamento, poder apreender a essência dos fenômenos, fatos ou eventos.
Isso quer dizer que não basta decidirmos que algo é verdade ou mentira ou nos basearmos apenas em notícias recebidas pelo WhatsApp para colocar em xeque alguns saberes. O esforço reflexivo que aponto aqui, não é algo próprio do senso comum, é um exercício a ser praticado com rigor científico.
Desse modo, para o bem de todos, é melhor que não sejam consideradas as primeiras impressões ou evidências para a tomada de decisões ou até mesmo para formarmos uma opinião sobre algo, pois podemos ser enganados.
Saindo da abstração conceitual e indo para a prática, em uma sociedade cada vez interconectada, mas, paradoxalmente e crescentemente, mais atomizada, acentuadamente mediada pela virtualidade, pela artificialidade e pela fluidez dos relacionamentos, a primeira impressão ou as evidências primeiras são más conselheiras.
Nesse contexto, considerando que estamos entrando em um ano de corrida eleitoral, cujo marketing das campanhas extrapola os limites aceitáveis do razoável, é bem provável que o que vemos ou ouvimos não represente a verdade dos fatos.
Um escritor judeu do primeiro século certa vez escreveu: “aquilo que se vê não foi feito do que é aparente (Hebreus 11:3)”.
Portanto, é preciso ter cuidado com as evidências superficiais, pois elas podem conservar um sombreamento que nos impedirá de ver o concreto como realmente ele é, correndo o risco de vê-lo apenas como ele se apresenta ou da maneira que nos parece ser mais conveniente de acordo com nossas crenças.
Por isso, é preciso cuidado. Como diz aquela máxima: “nem tudo é o que parece ser”.
*Sociólogo
Foto: Pillar Pedreira/Agência Senado