Criminalidade banalizada

De acordo com articulista Flávio Lauria, "as criminalidades, organizadas ou não, não topam de frente com políticas públicas consequentes".

Criminalidade banalizada

Ednilson Maciel, por Flávio Lauria*

Publicado em: 30/01/2023 às 12:07 | Atualizado em: 30/01/2023 às 12:11

Um país que perde 68 mil vidas por ano em razão de assassinatos está em guerra cruenta. O número é estarrecedor e derruba a tese de que o brasileiro, por natureza, é um homem bom. Somos o quarto país de uma macabra estatística, computados já os que estão em guerra ou em paz com os demais. No vasto mundo da criminalidade (todos os crimes) estamos a falar apenas dos crimes consumados contra a vida humana (homicídios). Ficam de fora as tentativas e suas vítimas, como as que ficam paralíticas ou com outras sequelas. Sequer estamos a falar das mortes por genocídio. Como acontece com os yanomani, nos desastres no trânsito, outra tragédia nacional, decorrente do horrendo conúbio entre a imprudência e as péssimas condições de nossas rodovias.

Não queremos saber que nível da Federação é responsável pela existência da chacina. Para a população, são todos: União, estados e municípios. Contudo, causa espécie que o governo federal, nestes últimos dez anos, em que a maré montante dos crimes contra a vida e a propriedade cresceu assustadoramente, não tenha coordenado com determinação e método um plano nacional de combate a estes tipos de criminalidade, nem tampouco provisionado, juntamente com estados e municípios, os recursos necessários à manutenção da ordem. Uma guerra como essa implica pesquisa, metodologia, recursos adequados e ações positivas.

O passo do desarmamento, por si só, não é suficiente, atuar apenas nos crimes de ocasião, mesmo assim precariamente. Haverá sempre, aqui e acolá, a arma branca, o porrete, a garrafa quebrada, a pedra na mão ou na funda.

David não matou Golias na base do bodoque, como reza a lenda? Sei, por exemplo, que inúmeros estudos feitos na universidade sequer foram aproveitados. Havia um expert no governo que tinha um plano de ação muito bom, fruto de anos de estatística, pesquisas e trabalho de campo. Foi-se embora, o governo se dando por moralista. Teria dado emprego à esposa e à ex. Tirante o fato que as moças eram competentes, pode um partido, que emprega em massa seus partidários, alegar coisa tão banal para defenestrar o dito cujo?

De lá pra cá, nada aconteceu de positivo. As grandes operações da Polícia Federal (“Beacon Hill”, “Jibóia”, “Anaconda”, et caterva) estão a combater outros tipos de criminalidade, sempre com muito alarde, o que não lhes retira o mérito. Para cada tipo de criminalidade, existem métodos diferenciados. Uma coisa o narcotráfico, outra o contrabando de armas, bem outra o crime contra as pessoas e a propriedade. Esses é que estão trazendo insegurança à população.

Certos segmentos estão resolvendo os problemas por conta própria, como, por exemplo, os bancos. Os assaltos às agências caíram sensivelmente. Os roubos de carga, também, com o rastreamento. Sobramos nós, vítimas indefesas. A polícia é meramente repressiva, chega depois do fato e, burocraticamente, faz o prontuário. Não raro a própria polícia faz a bandidagem. Ora, o que desejamos é uma política eficaz de prevenção criminal e esta não há.

A China, com 1,9 bilhão de pessoas, está à frente do Brasil. A tolerância zero devolveu a Nova York o nível razoabilíssimo de segurança. A Cidade do México, por isto, convidou o seu ex-prefeito para lhe dar consultoria. É assim que se faz. A situação está insustentável. Não ficamos sabendo de um caso aqui outro acolá, de tempos em tempos. Toda semana, um parente, um amigo, o amigo de um parente ou o parente de um amigo nos relata um sequestro-relâmpago, um assalto, um arrombamento, uma morte. São fatos que se tornaram banais.

No entanto, a vida, a liberdade de ir e vir em segurança e a propriedade são direitos fundamentais abroquelados na Constituição. Os governos estão no dever de nos servir e garantir. Mas ainda não se deram conta disso. Em Manaus e noutras cidades, existem mercados a céu aberto de coisas roubadas: celulares, relógios, tênis, correntes de ouro etc. Em camelódromos organizados pelo poder público, todo tipo de bens contrabandeados e falsificados são comprados pela população. Como proteger a propriedade intelectual e de marcas em conjuntura tão bizarra? As criminalidades, organizadas ou não, não topam de frente com políticas públicas consequentes.

Dez anos de neoliberalismo e de adoração ao mercado desregularam o País e dissolveram os valores mais comezinhos. Na luta pela sobrevivência, o certo e o errado igualaram-se e o ter superou o ser. Viver é preciso, seja lá como for. É dizer, o caos social venceu a ordem. Aos homens de boa vontade, sejam ricos ou pobres, restam a fé na verdade e a esperança em dias melhores. Precisamos de um Cícero moderno para escarmentar no Senado os poderes da República, sempre a repetir suas catilinárias.

*autor é professor universitário, administrador com mestrado e doutorado em Administração, especialização em Economia, escreve em blogs jornais e Facebook. Mais de 1800 artigos versando sobre diversos assuntos.

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil