Coronelismo, igreja e voto

Aldenor Ferreira diz que hoje há uma nova categoria de coronéis, formada por pastores, bispos e apóstolos, que chamou de "coronéis da fé"

Deputado - Parintins presidente Bolsonaro e Silas Câmara, pastor e deputado federal

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 02/04/2022 às 03:38 | Atualizado em: 04/11/2022 às 13:22

O título da coluna deste sábado faz referência direta ao livro de Victor Nunes Leal, intitulado Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil, publicado pela primeira vez em 1948.

Nesse texto, Leal analisa os fatores políticos, econômicos e sociais do Brasil na primeira metade do século XX, procurando identificar o jogo político hierarquizado da relação entre os poderes da república: governo federal, governos dos estados e governo dos municípios.

Para ele, “o coronelismo é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras”.

Complementando, ele vai dizer que não é possível compreender o fenômeno sem referência à estrutura agrária brasileira, “que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil”.

Noutras palavras, no período analisado pelo autor, o coronelismo se referia fundamentalmente ao poder de barganha dos grandes proprietários de terras – os coronéis. Isso permitia a esses senhores, mediante coação, cobrar de pessoas simples certo número de votos em favor de determinado candidato.

A base de sustentação desse poder eleitoral e dessa autonomia era, e ainda é, em muitos contextos regionais do Brasil profundo, a estrutura fundiária. Ou seja, o poder do coronel vinha e ainda vem diretamente de suas posses e das relações não republicanas com os poderes políticos nas esferas federal, estadual e municipal.

Feita essas considerações, estabeleço uma analogia da figura do coronel, analisada por Vitor Nunes Leal, com a figura dos pastores, líderes das grandes denominações evangélicas brasileiras atualmente.

De certa forma, o coronelismo, como apontado por Leal, perdeu força diante do processo de modernização da sociedade brasileira e de sua crescente urbanização. Todavia, praticamente nos mesmos moldes surgiram novos “coronéis”, verdadeiros mercadores da fé cristã. Ainda que não sejam grandes latifundiários – não que saibamos, pelo menos – são donos de grandes igrejas, verdadeiras franquias de comercialização da fé.

Antes, restritos basicamente aos circuitos de suas igrejas e com pouca influência nos meios políticos, os “coronéis da fé”, pastores, bispos e apóstolos, todos neopentecostais, hoje são donos de canais de rádio e televisão, portais de internet, editoras, jornais e revistas, estando no poder e contribuindo diretamente para a sustentação do governo do “Messias”. Essas figuras comandam, inclusive, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, bem como, até semana passada, o Ministério da Educação.

Nesse novo coronelismo, o que muda é a base de sustentação do poder: no coronelismo cristão neopentecostal, a base principal não é a posse de terras, mas a de igreja, seus milhões de membros e todo o poder midiático e político amealhado ao longo das últimas décadas no país.

Outro ponto de importante destaque é que o novo coronelismo é um fenômeno eminentemente urbano, enquanto o outro era rural. De todo modo, mantêm-se as relações não republicanas, a barganha, os interesses escusos e a coerção dos eleitores.

É importante mencionar ainda que o segmento evangélico cresceu bastante nos últimos anos no Brasil e que, de acordo com o IBGE, atingiu o patamar de 31% da população brasileira, o que equivale a 65,4 milhões de pessoas.

A partir do retorno promíscuo das relações entre Igreja e Estado principalmente a partir de 2018, o poder dos “coronéis da fé” se ampliou sobremaneira no país. Hoje, praticamente todos os candidatos a algum cargo eletivo, sejam eles de qualquer esfera, têm que “beijar a mão” do “pastor/bispo/apostolo coronel”, numa espécie de benção e de autorização para prosseguir.

Todavia, eu entendo que ainda que seja diferente do poder do coronel latifundiário, que tinha condições de coagir e reprimir fisicamente o eleitor sob a sua influência, dando-se discursivamente, o poder dos coronéis da fé não deixa de ser tão nocivo quanto o original.

Na verdade, eles só conseguem impor algum tipo de demanda eleitoral aos seus fiéis pelo estabelecimento de uma teologia do medo.

O discurso é de que o fiel será amaldiçoado pelo sacerdote caso não o obedeça, o que é uma tremenda enganação, pois a teologia cristã, a verdadeira, não apoia causas ilegítimas. Isso implica dizer que o fiel não tem que seguir seu líder se ele estiver errado ou pregar o oposto do que deveria.

Portanto, apesar desse cenário sombrio de retorno da relação medieval da Igreja com o Estado, há esperança para os eleitores cristãos que estão vivendo sob o pesado julgo dos coronéis da fé.

Trata-se de uma esperança dada pela própria organização do processo eleitoral do Estado brasileiro, visto que, a partir da Constituição Federal de 1988, houve a universalização do voto e a garantia de seu sigilo. A partir disso, não há como o coronel da fé ter controle total sobre as escolhas eleitorais de seus fiéis, o que acaba abrindo espaço para a resistência, para a desobediência.

Nesse sentido, se você, caro(a) leitor(a) cristã(o), está sendo coagido(a) pela liderança de sua igreja a votar em determinado candidato(a), saiba que o voto é livre e que você tem condições técnicas, dadas pela urna eletrônica, para exercer essa liberdade.

Entenda que se estamos vivendo em um tempo de coronelismo, em que igreja e voto são tratados como uma coisa só, isso não pode continuar se dando com a sua anuência. Portanto, se você for realmente cristão, desobedeça já!

*Sociólogo