Cantadores (en)cantados
Nesta crônica, o sapo é exemplo emblemático como experiência marcante na vida e canções, que se tornam inspirações de cantores brasileiros. Leia o que diz o biólogo Vinícius Avelar São Pedro

Neuton Correa, por Vinícius Avelar São Pedro*
Publicado em: 28/05/2025 às 07:12 | Atualizado em: 28/05/2025 às 09:29
A noite cai trazendo com ela o clima de romance. A música completa o cenário na voz de cantores que embalam casais nos bares, restaurantes, casas de show e… brejos. Sim! O coaxar típico das noites à beira dos ambientes aquáticos é basicamente uma serenata onde afinados cantores se exibem em busca de parceiros.
Os anfíbios anuros – chamados popularmente de sapos, rãs, pererecas, jias, caçotes – estão entre os grupos animais que priorizam a informação acústica para a comunicação entre indivíduos da mesma espécie, principalmente quando o assunto é reprodução. Suas vocalizações – como os coaxos são chamados tecnicamente – variam de acordo com a espécie em timbre, altura e volume, com algumas mais melódicas, outras mais percursivas, criando nos brejos verdadeiros espetáculos musicais.
No Brasil, é particularmente fácil perceber a importância dos sapos na paisagem acústica, afinal somos o país com a maior riqueza de espécies desse grupo no mundo. Abrigamos em nosso território cerca de 1.200 espécies de sapos, o que equivale a 15% de todas as espécies conhecidas no planeta.
Por esse motivo, temos o privilégio de ter admiráveis sinfonias dominando as noites nos campos e florestas de todo o Brasil, mas que também podem ser ouvidas em sítios, quintais e outros ambientes urbanos. Nesses locais, especialmente em noites quentes e chuvosas, um ouvido mais atento poderá distinguir os sons de mais de uma dezena de espécies de sapos em qualquer região do país.
Os cantadores dos brejos
O coro de sapos é um dos muitos aspectos da nossa rica fauna que caracteriza as paisagens do interior do Brasil, deixando marcas na nossa cultura. Os anfíbios estão presentes nas tradições orais dos povos indígenas, nas crenças e “causos” caipiras, na poesia, nas artes visuais e, é claro, não poderiam passar despercebidos por nossos músicos e compositores. Os cantadores dos brejos se tornaram a fonte de inspiração para alguns dos principais músicos brasileiros.
João Donato nos oferece um dos melhores exemplos da presença dos anfíbios na música brasileira. A composição mais regravada de toda sua carreira revela já no título os anfíbios como grande fonte de inspiração. “The frog” nasce como uma música instrumental de andamento sincopado, já denunciando a inspiração em um coro de sapos, um provável resgate de suas memórias afetivas da infância na Amazônia acreana.
A primeira versão cantarolada por Sérgio Mendes e banda confirma a referência: “Guiriguindim seria um sapo pequeninho, enquanto gorogondom seria um sapo gordo, de coaxar grave” (Lichote, 2023). Mais tarde, João Gilberto elabora um pouco mais os vocalises (vocalizações?) dando à sua versão o nome de “O sapo”.
Finalmente, Caetano Veloso põe letra na melodia de João Donato que, entre jogos de fonemas e palavras, contextualiza sapos e rãs em seu hábitat natural. A partir daí, já intitulada “A rã”, a música foi gravada por artistas como Gal Costa, Tim Maia, Mônica Salmaso, entre outros.
Outro exemplo emblemático da influência dos anfíbios no cancioneiro brasileiro está na “Cantiga do sapo”, a música mais gravada de Jackson do Pandeiro, composta em parceria com Buco do Pandeiro. Natural de Alagoa Grande, município situado na região conhecida como Brejo Paraibano, não é de se estranhar que o artista tenha resgatado de suas memórias sertanejas justamente o coro de sapos como mote para uma de suas principais canções.
A sinfonia dos sapos
A chegada das chuvas no sertão alegra não só a gente, mas também a sapaiada, que parece manter um diálogo, um bate-papo sobre trivialidades da vida no interior: “Tião? Oi! Foste? Fui! Compraste? Comprei!…”. Qualquer um que já tenha ouvido um coro de rãs-cachorro, por exemplo, deve ter tido a mesma impressão de estar presenciando um diálogo ou uma discussão entre os anfíbios.
Não por acaso, podemos encontrar o “Foi! Não foi!” dessas rãs, comuns em boa parte do Brasil, em cantigas populares e até mesmo no poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira. Mais tarde, ao homenagear o rei do ritmo em sua composição “Jack Soul Brasileiro”, Lenine parece usar também a voz de uma rã-cachorro para questionar: “Quem foi?… Quem foi?… Que fez o sapo cantor de lagoa?”.
Mais ou menos na mesma época dos sucessos de João Donato e Jackson do Pandeiro, outro sapo estourava nas paradas de sucesso do Brasil. Os irmãos Regina, Evinha e Mário Correa formavam o grupo vocal Trio Esperança, tendo como um dos seus primeiros sucessos outra música intitulada “O sapo”.
Composta por Jayme Silva e Neuza Teixeira, a letra bem-humorada conta a história de uma festa no brejo com sapos, pererecas e jias, e destaca a natureza musical dos anfíbios: “perereca, muito boa, fez-se ouvir ao violão. Sapo disse um discurso e cantou uma canção”. A música ensina ainda uma noção ecológica básica sobre os anfíbios ao explicar que “sapo mora na lagoa, perereca na folhagem”.
Coincidência ou não, ainda nessa mesma época, o sapo e a rã surgem na trilha pela Mata Atlântica carioca por onde nos guia Tom Jobim em “Águas de março”, uma das músicas brasileiras de maior sucesso no Brasil e no mundo.
Bituca e o encontro místico com os sapos
Outro gigante da música brasileira, Milton Nascimento, também teve sua experiência marcante com os sapos. Embora aparentemente isso não tenha sido registrado em nenhuma de suas músicas, o episódio foi relatado pelo grande compositor Márcio Borges, irmão de Lô, em seu livro de memórias “Os sonhos não envelhecem”.
Também no início da década de 1970, Márcio, Milton e Fernando Brant faziam uma trilha pelas serras nos arredores de Diamantina, Minas Gerais, numa localidade de impressionante beleza cênica conhecida como Sentinela.
“No entardecer róseo que prenunciavafrio,Bitucapuxouumamúsicanoviolão.Deumbrejopróximo,umsaporespondeuno tom. Nós nos entreolhamos. Na mudança de acorde, outro sapo coaxou também no tom, mas ajuntando uma terça maior. Bituca fez evoluir o acorde e a saparia (ou sapaiada) atacou de quintas, sétimas, nonas, harmônicos, em vocalização completa, veementemente interpretada” (Borges, 2011).
O próprio Márcio define esse curioso “dueto” com os anfíbios como “um dos mais comoventes acompanhamentos musicais que Bituca teve a oportunidade de receber em toda a sua carreira de músico” (Borges, 2011).
Se Bituca não registrou em letra de música seu encontro místico com os sapos, outros compositores mineiros foram mais explícitos em sua afeição pelos anfíbios. “Passar a noite caçando sapo, contando caso…” é um dos grandes prazeres na vida de um herpetólogo (cientista que estuda os anfíbios), mas parece também fazer parte do ideal de vida bucólica descrita por Beto Guedes em “Lumiar”, uma de suas mais famosas canções, escrita em parceria com Ronaldo Bastos.
Os anfíbios no cancioneiro brasileiro
Os anfíbios marcam presença também no álbum “Os Borges”, que reúne todos os músicos da talentosa família mineira, núcleo de origem do movimento musical conhecido como Clube da Esquina. Nesse álbum icônico, é justamente a música folclórica “O sapo”, adaptada pelo patriarca, Seu Salomão, a faixa escolhida para congregar todos os músicos da família cantando e tocando juntos (Massolini, 2009).
Mas é outro mineiro, o já saudoso Vander Lee que, em sua emocionante ora-canção “Alma nua”, reconhece o valor poético dos anfíbios ao incluir em suas preces: “Oh Pai… Dai-me o silêncio da noite, pra ouvir o sapo namorar a lua”.
Admiração parecida ficou registrada na canção “Sapo”, de Renato Teixeira, outro grande trovador das riquezas do interior do Brasil: “Olha, escuta o sapo, na lagoa a cantar. Olha como é lindo, ouvir de noite, ele cantar”. Do universo caipira vem também o famoso trava-língua de “O sapo no saco”, sucesso original da dupla humorística Jararaca e Ratinho, gravado também por Rolando Boldrin.
Os anfíbios aparecem como mote principal em canções de muitos outros artistas e bandas consagrados como Tavinho Moura (“Papo de sapo”), Bezerra da Silva (“Rapa cuia”), Jorge Mautner (“Sapo cururu”), Zé Fortuna (“O palpite do sapo”), Trio Nordestino (“Sapo cururu”) e Tianastácia (“Sapo Antunes”, composição em parceria com Tom Zé).
Outras referências
E as referências aos anuros no cancioneiro brasileiro não param por aí. Não podemos nos esquecer da forte presença dos sapos nas músicas infantis, como personagens centrais em dezenas de composições entre cantigas tradicionais e músicas mais recentes. E se considerarmos também as menções em sentido metafórico, menções humorísticas de duplo-sentido (“perereca”) ou em referência a simpatias e feitiços (ex.: “seu nome na boca do sapo…”), sapos, rãs, jias e pererecas aparecem em mais de 300 músicas nacionais (Lorenção, 2022).
Se, por um lado, os anfíbios são considerados por muitas pessoas como asquerosos e de aparência repugnante, é na música – tanto a que eles produzem quanto as que inspiram – que eles nos mostram sua face mais admirável.
Como o sabor da comidinha de vó ou o cheiro da terra após a chuva, a cantoria dos sapos repousa guardada no fundo de nossas memórias sensoriais, vez ou outra vindo à superfície e manifestando-se em nossa produção artística.
Que seja essa música da natureza, produzida por sapos, insetos e aves, a nos inspirar rumo a um convívio mais harmonioso com a fauna. E que esta seja finalmente reconhecida em seus múltiplos valores, para além dos benefícios econômicos e pragmáticos, mas também por sua importância afetiva, marcada nas mais diversas expressões culturais de nosso povo.
*O autor biólogo. Professor da Universidade Federal de São Carlos, Campus Lagoa do Sino.
Publicado originalmente em “O Eco”.
Arte: Gilmal