BR-319: preconceito geográfico e étnico-racial

Neste artigo, o sociólogo Aldenor Ferreira diz que recuperação da BR-319, do asfaltamento de um trecho, conhecido como “trecho de meio”, se tornou puramente ideológico.  

BR-319: preconceito geográfico e étnico-racial

Ednilson Maciel, por Aldenor Ferreira*

Publicado em: 15/02/2025 às 02:17 | Atualizado em: 15/02/2025 às 05:53

A questão da recuperação da BR-319 já extrapolou todos os limites da razoabilidade. O debate acerca do asfaltamento de um trecho de 656,4 km, conhecido como “trecho de meio”, se tornou puramente ideológico. 

Alguns cientistas estrangeiros e outros não nativos do Amazonas e de Rondônia produzem verdadeiro terrorismo ambiental acerca dos desdobramentos do asfaltamento da BR-319. Meu colega, o sociólogo Lúcio Carril, já desmontou essa farsa discursiva, na qual “autoridades acadêmicas” promovem pânico moral acerca da possibilidade de asfaltamento da rodovia. 

Carril está certo. Não se trata apenas de questões científicas ou de preocupação genuína com o bioma amazônico, mas de puro preconceito geográfico e étnico-racial, um preconceito que beira o nazismo. Aliás, esses preconceitos se manifestam em todas as questões relacionadas à Amazônia.

Desprezo e ódio

O preconceito, com matizes nazistas, pode ser observado quando cientistas e políticos não levam em conta a vida das pessoas que habitam o bioma amazônico. No fundo, o que essa gente branca e abastada que transita na ciência e na política (salvo as exceções, claro) gostaria é que não existisse gente na Amazônia. Mas elas existem e precisam de cuidados. Elas são detentoras de direitos tal qual outros brasileiros. 

O desprezo é uma clara oposição e manifestação de ódio aos indígenas, caboclos, caminhoneiros e demais trabalhadores, essa gente mestiça, mas bela, que insiste em viver na Amazônia e a transitar pela enlameada BR-319. Essa rodovia, ao contrário do que afirmam renomados pesquisadores, já existe há quase meio século. 

Todavia, há décadas ela está em permanente estado de precariedade. Pontes já caíram, pessoas já morreram, doenças e miséria assolam as comunidades, mas nada disso importa para os formadores de opinião e tomadores de decisão. É como se esses brasileiros, esquecidos pelo restante da sociedade nacional e pelo poder público, fossem cidadãos de segunda categoria. 

Não podemos concordar com isso. Esses brasileiros não são uma raça inferior. Eles merecem ter acesso aos confortos da vida moderna, que, necessariamente, perpassa a questão da infraestrutura: rodovias, água potável, energia elétrica, esgoto, acesso à saúde e à educação, entre outros. 

Lugar de fala

É significativo notarmos que as vozes que mais se levantam contra o asfaltamento da BR-319 pertencem a pessoas físicas e jurídicas de fora do Amazonas, de Rondônia e mesmo de fora do Brasil. Como mencionado, o debate sobre a rodovia deixou de ser técnico para ser meramente ideológico. Entretanto, não se pode usar a ciência e a política, sob o pretexto de defender a Amazônia, para massacrar nossos concidadãos. Isso é abjeto. É desumano. 

Como amazonense, nascido e criado às margens do Paraná do Aduacá, no município de Nhamundá, que sabe o que é passar fome, viver na miséria, no abandono do poder público, sem saúde, sem educação e sem renda, invoco o meu lugar de fala para dizer que governo federal e os demais poderes da República têm o dever político e moral de resolver a situação da BR-319. 

Todos os estudos e relatórios de impacto ambiental já foram realizados. Abundam dados socioambientais sobre o empreendimento. Portanto, não se trata de negar nenhum estudo científico, nenhum levantamento estatístico, econômico e social, mas, sim, de utilizar todo o levantamento já realizado para propor um projeto de revitalização da rodovia que seja moderno e dentro dos critérios da sustentabilidade. 

Isso é possível? Sim, é absolutamente possível. Do contrário, estaremos declarando a falência do Estado brasileiro. Declarando a nossa incompetência e a falência da intelligentsia acumulada no âmbito da engenharia e da questão ambiental que temos, pois um Estado que se diz democrático não pode condenar cerca de quatro milhões de seus concidadãos ao isolamento e à miséria. 

Conclusão 

É importante declaramos que floresta em si, sem relação com o humano, é apenas um espaço desprovido de perspectiva teleológica, visto que o humano também faz parte da natureza. Na verdade, o que está impedindo o asfaltamento de apenas um trecho da BR-319, além dos diversos interesses externos em jogo, é o preconceito geográfico e étnico-racial contra os povos amazônicos.

Tenho dito! 

*O autor é sociólogo.

Arte: Gilmal