Boi é bom para pensar
"E pensando a partir disso, o poder educativo das festas populares, como o boi-bumbá, é maior do que parece", como afirma Dassuem Nogueira. Leia no artigo da antropóloga

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*
Publicado em: 15/05/2025 às 09:27 | Atualizado em: 15/05/2025 às 09:28
Um antropólogo clássico, Claude Lévi-Strauss, um dia contestou a ideia de que as sociedades nativas, chamadas naquele momento de primitivas, só conheciam o que era útil para a vida.
As sociedades africanas dominavam a expertise de criar gado não só porque era bom de comer, mas porque era bom para pensar sobre a vida a partir deles.
E pensando a partir disso, o poder educativo das festas populares, como o boi-bumbá, é maior do que parece. Não é à toa que as artes são componente básico dos currículos escolares da educação fundamental.
Comida, diversão e arte
A arte, assim como a filosofia e a educação física, são disciplinas bastante menosprezadas em relação ao conjunto da educação formal.
Pois bem. Não e à toa que as matérias escolares se chamam disciplinas. O seu objetivo é, justamente, disciplinar as mentes e corpos para a vida produtiva.
Porém, a filosofia e a educação física e a arte formam para a liberdade de pensamento, do corpo e da criação.
O papel da filosofia é perguntar para o conjunto das ciências o que ela pretende com o que faz. O da arte, é extrapolar a ciência e o corpo.
Com uma imagem, um som, ou uma noite de espetáculo em Parintins, ela é capaz de fornecer um conjunto de imagens, sons e sensações mais eficientes em formar subjetividades (creio que desenformar é o verbo mais adequado) do que um trimestre de aulas em uma carteira escolar.
Um dia chegou nesta terra o conquistador
Uma das coisas mais relevantes que o festival de Parintins fez pela história da Amazônia foi a destituição da ideia de “descobrimento”, quando passaram a assumir uma versão de história que compreendia o contato como uma invasão.
Tomo como marco o ano de 1995, quando o boi Garantido encenou a toada “Fogo”, de Inaldo Medeiros, Alex Pontes e Dé Monteverde, e comoveu.
Então, de descobridor, o branco passou a ser o colonizador, o invasor, materializado em nossas mentes por esse e outros espetáculos que seguiram mostrando massacres desiguais.
Estética indígena
O boi-bumbá de Parintins tornou-se um grande divulgador de estéticas indígenas em forma de alegorias que buscam contar as histórias de outros muito próximos de nós.
O que é muito em um país onde a política da assimilação, da integração, da aculturação desses povos não foi completamente superada.
Afinal, tal política indigenista se converteu em ideologia e ainda persiste na sociedade nacional como instrumento de apagamento dessas coletividades étnicas, onde também podemos incluir os quilombolas e ribeirinhos.
Apesar do mérito, o festival de Parintins pode refinar sua compreensão. As riquíssimas ontologias indígenas são ainda espetacularizadas pela visão do colonizador, que ainda não foi completamente derrotado na arena.
A visão colonial
Quando se apresenta, ano após ano, rituais nos quais o pajé é aquele que faz uma viagem transcendental, provocada por uma substância alucinógena, para enfrentar o mal em uma batalha espiritual, está reproduzindo uma visão colonial.
Todos esses elementos, o ritual, o pajé, a transcendência, o “alucinógeno”, são componentes de algo bem diferente do que a batalha entre o bem e o mal cristãos.
Fazem parte de um modo de ver a vida muito mais sofisticada que essa, do bem e do mal, que nos deixou o homem branco cristão.
O mesmo ocorre com as ontologias ribeirinhas e quilombolas.
Quando se apresenta um puxador de ossos como o “médico da floresta”, se estabelece que o saber fazer desse especialista está sendo validado pela medicina, que é o saber médico hegemônico em nossa sociedade.
O puxador, benzedor, sacaca são outra coisa.
Criação de pontes
Finalmente, com indígenas sendo convidados a cocriar com os artistas parintinenses, o que se viu primeiro o boi Caprichoso, espera-se que essa fase esteja em vias de ser superada.
Cada povo indígena é um universo de riqueza. Tanta, que nos custa entender.
A arte é o que pode construir pontes que permitam experimentar coisas tão diferentes.
Como têm feito artistas plásticos da envergadura de Jaider Esbel, do povo macuxi, por exemplo.
Além de competir entre si, os bois tem a oportunidade de superar a si mesmos e nos trazer o novo. No caso, o antigo, o milenar modo de conhecer o mundo dos povos indígenas.
*A autora é antropóloga.
Foto: Mauro Neto/Secom