O Brasil hoje: os bestializados pela República, o poder do atraso e a força do imobilismo
Neuton Correa
Publicado em: 04/04/2018 às 21:17 | Atualizado em: 06/03/2020 às 12:03
José Alcimar de Oliveira*
1 – No Brasil os grandes partidos abdicaram da ideia de projeto de País. Em suas agendas só há espaço para a cronologia do tempo eleitoral, pior, eleitoreiro. Operam como forças reativas guiadas pelo poder do atraso. Promovem um concerto fisiológico regressivo à audição e à razão. Segundo bem o definiu Marcos Nobre, referindo-se ao PMDB, e agora MDB – mas sua análise alcança os demais grandes partidos –, trata-se do “imobilismo em movimento”. Nunca devemos subestimar as tramas de bastidores onde se trava o real arranjo da nanopolítica da República sem cidadãos.
2 – A política dominante parece guiar-se e arrumar-se num festim que combina, num escárnio desinibido, uma realidade triádica: inter pocula, cúpula e cópula. Isso me leva ao tão pouco lembrado Ortega y Gasset ao afirmar que a técnica contemporânea resulta da cópula entre capitalismo e ciência experimental. Num registro mais chão e nesse país de poucos, o que se vê de fato é a alta promiscuidade entre capital e poder, tanto na esfera do executivo, legislativo e judiciário quanto na de outros poderes: religioso, intelectual, mediático.
3 – Cícero referia-se, a seu tempo, a bene morata civitas – cidade de bons costumes. Mas ao Brasil parece convir melhor a célebre afirmação agostiniana em sua obra máxima, A cidade de Deus: remota itaque justitia, quid sunt Regna nisi magna latrociinia? (se desaparece a justiça, o que são os Estados, senão um bando de ladrões?). Nesse 04 de abril de 2018, ao proferir seu voto no pedido de habeas corpus ao ex-presidente Lula, ouvi do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso: “criamos um país de ricos delinquentes”.
4 – Esse quadro regressivo, de acelerada corrosão institucional, torna atuais e mesmo indispensáveis três leituras para uma objetivação crítica da ainda por proclamar República brasileira: Os bestializados, de José Murilo de Carvalho; O poder do atraso, de José de Souza Martins; e O Imobilismo em movimento, do já referido Marcos Nobre. Os bestializados pela República proclamada, submetidos ao secular poder do atraso, permanecem sob o poder do imobilismo em movimento.
5 – No Brasil, país que já nasceu nominal e venalmente comoditizado pela exploração primitiva da madeira que lhe deu nome, apenas nome, mas riqueza imediata ao colonizador ávido de lucro, obtido e combinado à miséria da extração que se fez à custa do trabalho escravo indígena, parece aprofundar-se a cada dia o destino apontado por Antônio Callado: condenado a nunca sair do ritmo ridículo de país pequeno. O pau-brasil, nossa Caesalpinia echinata, fez a fortuna de poucos e o infortúnio dos povos livres que habitavam essas terras: índios submetidos à escravidão mercantil e a terra convertida em Capitanias Hereditárias já na primeira metade do século XVI.
6 – O pau-brasil faz a ponte perversa entre as formas históricas do sistema do capital, cuja obra maior e atual é o sólido e bem enraizado Estado Oligárquico de Privilégios. Índios e negros integrados à ordem escravocrata da Colônia, do Reino, do Império e renitente na República. Nosso auriverde pendão naturaliza a miséria e vela o sangue dos povos e da biodiversidade da pátria assenhorada pelo capital. A ordem do capital a serviço do progresso desigual (Antonio Candido) e do privilégio de poucos.
7 – O que verdadeiramente nos divide não são os partidos. É o poder ditatorial do grande capital que aprofunda a apartação entre o Brasil real do povo que vive do trabalho e o Brasil oficial e servil aos interesses predatórios do financismo globalizado. Esse divisor nos permite ver que Brasil é representado e defendido pelos poderes da República. O desastre maior dessa crise agora agudizada, mas de longa história, será responder a ela – como é prática de nossa nanopolítica – com saídas emergenciais e de cúpula. No Brasil o difícil mesmo é fazer previsão sobre o passado. Porque o futuro se antecipa claro e cupular.
*José Alcimar de Oliveira, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, é base da ADUA – S. Sind., filho dos rios Solimões e Jaguaribe e devoto do Padim Ciço.
Em Manaus, AM, 04 de abril de 2018.