As linhas territoriais indígenas protegem também o não indígena

Uma das principais queixas dos povos tradicionais é a de que o marco temporal ameaça a sobrevivência de comunidades e de florestas

Mariane Veiga, por Mariane Veiga

Publicado em: 04/09/2023 às 20:43 | Atualizado em: 04/09/2023 às 21:13

O processo de demarcação, regulamentado por decreto, meio administrativo para identificar e sinalizar os limites de territórios tradicionalmente ocupado por povos indígenas, compreende diversas etapas burocráticas no Brasil.

No entanto, lideranças indígenas, de diferentes etnias, temem que a proteção aos povos indígenas e ao meio ambiente fiquem prejudicadas e se colocam contra a propostas de marco temporal (uma tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito apenas às terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal). E essa é a mensagem simples e direta desses povos. Eles querem ocupar suas terras, inclusive as ocupadas por seus ancestrais, sem restrição.

Já os defensores da tese do marco temporal apontam que a matéria pode trazer segurança jurídica e incentivar a produção agropecuária fora das áreas demarcadas.

Uma das principais queixas dos povos tradicionais é a de que o marco temporal ameaça a sobrevivência de comunidades e de florestas.

O Greenpeace classifica a ideia como “absurda e ilegal” e diz que a proposta do marco é a principal ameaça contra os povos indígenas atualmente.

De acordo com a Constituição, “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo”.

No entanto, a ‘estabilidade’ dos povos originários é colocada a prova quando essa população não é atendida ou se sente ameaçada.

Atualmente, um projeto de lei (PL 2.903/2023) que estabelece um marco temporal para a demarcação de terras indígenas foi aprovado na comissão de Agricultura e Reforma Agrária, do Senado, e deve seguir para análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da mesma Casa.

A proposta já havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados no final de maio deste ano, após tramitar por mais de 15 anos.

Portanto, esse é o tempo que se discute, por exemplo, a instalação de bases militares, a construção de rodovias, a instalação de redes de comunicação e a construção de edifícios “necessários” nesses territórios. O projeto prevê ainda “a exploração econômica das terras indígenas”.

Pesca, caça e coleta de frutos, por exemplo, são autorizadas para não indígenas se estiverem ‘relacionadas ao turismo’, conforme o projeto.

No seu relatório, a senadora Soraya Thronicke se manifesta favorável à definição do marco temporal de 1988 para a demarcação de terras indígenas e recomenda a aprovação do projeto na forma como veio da Câmara dos Deputados.

Já no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento sobre demarcação de terras indígenas foi suspenso em 2021 e retomado em 7 de junho de 2023.

Após um pedido de vista (mais tempo para análise) do ministro André Mendonça, em junho, o julgamento do recurso foi novamente suspenso.

Retomado no último dia 30 de agosto, e com o placar de 4 votos a 2, o STF marcou para o dia 20 de setembro a continuação do julgamento da tese.

Até o momento, já se manifestaram os ministros Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Edson Fachin e Cristiano Zanin contra o marco temporal. Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor.

O ministro Alexandre de Moraes defende, por exemplo, que, prevalecendo a hipótese do marco temporal, “a demarcação de terras de uma comunidade retirada à força do local antes da promulgação da Constituição seria impossível”.

Segundo ele, “não há um modelo global de reparação aos povos originários pela ocupação de suas terras pelas nações colonizadoras, e essa é uma das questões históricas mais difíceis a serem enfrentadas no Brasil”.

Portanto, é um direito indiscutível, como defende o ministro Edson Fachin, relator do caso no STF. Segundo o ministro, o direito dos indígenas à terra é originário, anterior ao próprio Estado.

O brasil possui hoje, segundo registros da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), 761 terras indígenas.

Ainda conforme o órgão federal, essas áreas representam aproximadamente 13,75% do território brasileiro, estando localizadas em todos os biomas, sobretudo na Amazônia Legal.

Vanda Witoto, ativista e uma das principais lideranças indígenas no Amazonas atualmente, criticou, via redes sociais, o avanço do projeto do marco temporal no Senado.

Ela reprovou a relatoria de Soraya Thronicke, por ignorar os alertas da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e de parlamentares da ‘bancada do Cocar’.

Em recente entrevista, Witoto também lamentou a falta de reconhecimento da população amazonense acerca das referências indígenas e classificou o desprezo à cultua indígena como uma “agressão” aos povos originários. “As pessoas precisam se reconhecer nesse lugar”, destacou ela.

Até 2010, o Brasil registrou a existência de 274 línguas indígenas no país, onde vivem 817.963 mil indígenas de 305 diferentes etnias.

De acordo com Dinamam Tuxá, coordenador da Apib, “as terras indígenas são essenciais para manter a vida e a subsistência de 305 povos indígenas brasileiros. A demarcação destas terras significa garantir a diversidade cultural e a preservação dos modos de vida tradicionais, que garantem a proteção do meio ambiente e da biodiversidade”.

Desse modo, a proteção aos povos indígenas, seus territórios e ao meio ambiente está longe de ser uma demanda distante para os ‘não indígenas’. As lamentações são claras e compreensíveis.

A garantia dessas vozes, culturas, tradições não deveria ser uma “causa menor” dentro da sociedade amazonense, que tem dificuldade de compreensão de pertencimento.

Principalmente na nossa região, o Amazonas (490,9 mil) concentra a maior população indígena no país, e até 2022, Manaus era o município brasileiro com maior número de pessoas indígenas, com 71,7 mil, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a cada metro quadrado, encontramos um amazônida, o que nos leva a observar o quanto estamos envolvidos nos processos que envolvem as vidas indígenas, sejam de demarcação ou autoidentificação.

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil