Artigo assinado por indígenas do Amazonas é publicado na Science

O artigo fala sobre as contribuições da ciência indígena para a ecologia, conservação e restauração das florestas.

Artigo assinado por indígenas do Amazonas é publicado na Science

Ednilson Maciel, Por Dassuem Nogueira*  

Publicado em: 19/12/2024 às 18:22 | Atualizado em: 19/12/2024 às 18:22

A Science, uma das revistas científicas de maior prestígio do mundo, publicou pela primeira vez um artigo assinado por antropólogos indígenas brasileiros, formados pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam): Justino Tuyuka, pós-doutorando, João Paulo Tukano, professor visitante, Silvio Bará, doutor, e a doutoranda Clarinda Sateré-Mawê.

Trata-se do artigo “Indigenizing Conservation Science for a Sustainable Amazon”, cuja tradução é “Indigenizando a ciência da conservação para a sustentabilidade da Amazônia”. A produção também é assinada por pesquisadores não indígenas do projeto do Brazil LAB, da Universidade de Princeton.

Diálogo ciência ocidental-indígena

Se colocarmos o tempo como parâmetro, vemos que os povos indígenas elaboram conhecimento sobre o mundo há muito mais tempo que a ciência ocidental.

Povos indígenas vivem na Amazônia desde 8 e 12 mil anos atrás. Se tomarmos como marco o Renascimento, nos séculos XVI e XVII, temos que a ciência ocidental moderna tem pouco mais de quinhentos anos.

Assim, podemos afirmar que os povos indígenas estão em franca vantagem no acúmulo de teorias sobre o mundo. Contudo, ambas ciências possuem pressupostos diferentes.

Mas, o artigo publicado pela Science afirma que a busca por teorias e práticas ecológicas eficientes no campo das ciências da conservação tem reconhecido a robustez das ciências indígenas nesse aspecto. Assim, o diálogo entre elas tem crescido nas últimas de quatro décadas.

Uma evidência facilmente observável do valor das ciências nativas é que as florestas das terras indígenas brasileiras são os locais onde a vida em sua diversidade está mais e melhor preservada.

Não se trata do clichê dos povos indígenas vivendo em harmonia com a natureza, mas do trabalho consistente de observação, elaboração e práticas de cuidado com as vidas da floresta, em amplo sentido.

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Bases científicas

O artigo analisa que, embora, as ciências da conservação tenham obtido significante sucesso em seu objetivo, elas apartam a vida humana e seguem compreendendo a natureza como fonte de recursos.

De modo geral, a ciência ocidental costuma trabalhar sobre a dicotomia natureza/cultura. Assim há ciências humanas e naturais. Dificilmente, essa dicotomia é superada e essas duas dimensões da vida são trabalhadas ao mesmo tempo.

Segundo o artigo, as ciências indígenas trabalham com elaborações relacionais entre todas as existências, colocando-as com pesos de igual importância para a fluidez e geração da vida.

Aqui os seres humanos não são colocados no centro do mundo. Tampouco a natureza é vista como aquela que deve suprir suas necessidades. Cada entidade viva tem um modo de existir que deve ser considerado para a manutenção de relações cosmopolíticas sustentáveis.

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Além dos humanos

O exemplo dado no artigo é o da cosmopolítica indígena do alto rio Negro, de onde vem três dos quatro pesquisadores que assinam o artigo – a única pesquisadora é do povo sateré-mawé, do baixo rio Amazonas.

A arte-conceito que ilustra a cosmopolítica dessas etnias é assinada por Denilson Baníwa, renomado artista da arte contemporânea. Ela fala dos três espaços habitados por diferentes espécies: o aéreo (clima e constelações), o terrestre (solo e floresta) e o aquático (que inclui o subaquático).

Nessa cosmopolítica, “os humanos ocupam o domínio terrestre e desenvolvem relações sociais e ecológicas com todos os participantes do ecossistema: humanos, “outros-humanos” e outros seres (que incluem todos os elementos, como animais, plantas, montanhas e rios) sob os cuidados de outros humanos”.

Os “outros-humanos”, ou waimahsã na língua Tukano, também são conhecidos como donos/mestres ou encantados. Eles têm as mesmas qualidades que os humanos, mas são invisíveis. Eles habitam e protegem os três domínios.

A cosmopolítica

Esse aspecto das ciências indígenas diverge da ciência ocidental que opera segundo uma lógica metodológica que exige comprovação visível ou sensível.

Porém, a cosmopolítica é central para as teorias e práticas indígenas e encontra um importante espaço de intersecção com as ciências ecológicas.

Se chama cosmopolítica porque teorias e práticas sobre o mundo são acionadas no relacionamento e negociação com os “outros humanos”, protetores dos três domínios do mundo.

Nem sempre as relações entre os diferentes tipos de vida são harmônicas, podendo ser perigosas.

Nesse sentido, a cosmopolítica requer o envolvimento dos povos indígenas e seu ambiente, pois eles integram um conjunto de interações ecológicas relevantes para a dinâmica sustentável do ecossistema.

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Dinamismo socioecológico

O exemplo utilizado no artigo é “… quando as mulheres abrem espaços para suas plantações na floresta, elas empregam técnicas baseadas em relações com outros participantes do ecossistema para manter sua diversidade e sustentar sua dinâmica relacional”.

Nesse caso, trata-se do ecossistema na perspectiva indígena que inclui “outros humanos” (os invisíveis), outros-humanos” e outros seres (animais, plantas, montanhas e rios).

Com relacionamentos e negociações cuidadosas, os humanos modificam o ambiente sem “ofender” nenhuma das partes. É esse dinamismo socioecológico que permite inovações bem sucedidas e transformações em pequena escala dos ecossistemas.

Os autores mencionam que alguns desses feitos são reconhecidos, atualmente, como práticas milenares também pela arqueologia, como o desenvolvimento e o manejo de florestas culturais; o solo cultivado pelos indígenas, altamente fértil, conhecido como Terra Preta Amazônica; obras de terraplenagem monumentais e em grande escala; e sistemas agroflorestais.

Desse modo, as interferências produzidas pelos indígenas na floresta ajudaram a criá-la e derruba a teoria de que a Amazônia é um fruto de eventos absolutamente naturais.

Para os autores, “Estas descobertas ajudam a desconstruir o conceito naturalista e colonialista de floresta “intocada” ou desabitada (ou minimamente afetada) que orientou os sistemas de uso da terra colonial e pós-colonial durante séculos e que continua influenciando a investigação científica e informando os tomadores de decisão, bem como continua a orientar práticas contemporâneas de uso da terra que causam degradação e desflorestamento em larga escala”.

O reconhecimento da ciência indígena em seus próprios termos, sem que precise da validação da ciência ocidental, é de suma importância para o estabelecimento de diálogos. Principalmente, para o momento que estamos vivendo em que as mudanças climáticas produzem cenários extremos, tornando a vida de todos os seres que vivem no planeta mais difíceis.

*A autora é antropóloga.

Ilustração: Denilson Baniwa/reprodução