Amazônia e seu imaginário fantástico (parte final)
Neste último artigo sobre o imaginário amazônico (trilogia), Aldenor Ferreira fala de visagens, das histórias que ouviu sobre Matinta Perêra

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 29/01/2022 às 04:49 | Atualizado em: 29/01/2022 às 04:49
A parte final da trilogia sobre o imaginário fantástico da Amazônia tratará da lenda da Matinta Perêra, um “bicho visagento” muito comum nessas paragens.
As conversas à boca da noite, naquela varanda às margens do Paraná do Aduacá, eram muito animadas e misteriosas.
Depois da fantástica história da cobra grande, que publiquei na semana passada, para o assombro dos mais jovens, surgiram as histórias de bichos visagentos (humanos que se metamorfoseiam, transformando-se em animais).
Naquela noite, muitos anciãos afirmaram categoricamente já terem visto algum tipo de visagem (assombrações, vultos, aparições etc.) e bichos visagentos, como a Matinta Perêra ou Matin, como é conhecido naquela região.
Um ancião, no alto de seus 76 anos, contou que, nos primórdios do povoado, teve a oportunidade de flechar um Matin. Segundo ele, no início da noite, quando se preparava para jantar, viu uma estranha movimentação nas árvores próximas de sua casa.
Ao observar mais atentamente aquela movimentação, percebeu que não se tratava do efeito do vento nas árvores, fato que o deixou bastante curioso e, ao mesmo tempo, receoso. Como não conseguia identificar nada, resolveu pegar seu arco e se aproximar mais do local, foi quando, subitamente, ouviu um assobio muito forte –“firififiuuuu” –; ele, institivamente, disparou uma flecha em direção ao som.
“Só ouvi o grito”, comentou.
Sua filha, que também havia escutado o urro, se aproximou, indagando o que havia acontecido. Ele respondeu, afirmando que, pelo assobio, provavelmente, havia flechado um Matin: “vamos nos recolher, tranque bem as portas”, acrescentou.
Pela manhã, ao se dirigir à igreja, localizada na parte central da vila, para a missa dominical, percebeu que a sua flecha estava depositada aos pés da cruz que fica em frente à igreja. Mas, para o seu espanto, a flecha não apresentava marca nenhuma de sangue. “Até hoje, para mim, aquilo era um Matin, pelo assobio eu tenho certeza”, concluiu.
Há várias descrições dessa lenda na literatura brasileira; sem dúvida, trata-se de uma das mais populares dentro do folclore nacional.
Apolonildo Britto, no livro Lendário Amazônico, afirma que a palavra “matintape’re” vem do tronco linguístico tupi. “Na língua portuguesa, tornou-se um substantivo sobrecomum, significando uma das aves feiticeiras do Brasil, tida como divindade das matas e protetora das festas”.
Ainda segundo o autor, “no lendário do Norte e Nordeste brasileiros, essa ave tem o dom de desnortear e fazer com que incautos se percam na floresta […]”. Nas noites de luar, a ave vira uma mulher, com o poder de pairar no ar.
Alguns dizem ser uma bela mulher, outros dizem ser uma feia senhora de idade, mas, em todos os escritos, os encantamentos da Matinta só se desfazem com a entrega de tabaco a ela.
Aliás, é justamente no seu desejo pelo tabaco que está a chave para que qualquer pessoa descubra a verdadeira identidade da Matinta. Ao ouvir o assobio na mata, deve-se inclinar-se na direção de onde vem o som e prometer dar tabaco a ela.
No dia seguinte, logo nas primeiras horas de claridade, a primeira pessoa que bater à porta pedindo tabaco é a pessoa que se transforma em Matinta nas noites de luar. Neste momento, deve-se providenciar o produto e atender ao pedido da visita, caso contrário, ela voltará à noite para perseguir a pessoa que lhe negou o desejo.
As histórias de gente que vira bicho fazem parte do imaginário social da Amazônia. Mesmo possuindo forte religiosidade, com predomínio da fé católica, as histórias fantásticas de seres sobrenaturais continuam com força total nas comunidades rurais e, também, nas pequenas cidades.
Os caboclos amazônicos, a par da proteção divina e de seus santos, continuam crendo na existência das visagens e dos bichos visagentos. Nem mesmo a chegada da energia elétrica nas comunidades rurais e, consequentemente, da televisão, de celulares e demais aparatos tecnológicos, foi capaz de diminuir essas crenças.
A respeito disso, Eduardo Galvão, no clássico Santos e Visagens (1955), em sua descrição da vida religiosa de Itá (nome fictício dado por ele para proteger a identidade da comunidade estudada), pontua que qualquer descrição da vida religiosa daquela comunidade amazônica estaria incompleta se deixasse de incluir, ao lado de crenças e instituições católicas, outras, igualmente arraigadas na mente do caboclo, mas de origem diversa.
Galvão afirma que as “crenças arraigadas na mente do caboclo não podem ser postas de lado sob a alegação de que se trata de superstições ou de sobrevivências ‘pagãs’, porque são igualmente ativas e capazes de despertar atitudes emocionais e místicas na mesma intensidade que as dos santos católicos”.
Na análise feita por Galvão, há, nas comunidades rurais da Amazônia, uma cumplicidade entre as crenças católicas e o saber popular, ou seja, entre a proteção dos santos e o temor das visagens. E acredito que ele tem razão: o temor das visagens e dos bichos visagentos ainda é muito presente na vida dos caboclos amazônicos.
Eu mesmo, à época que me contaram essa história, fiquei mais assombrado com a lenda da Matinta Perêra do que com a da cobra grande. Ao retornar para casa, fui rezando pelo caminho, pedindo livramento divino.
Mistérios!
*Sociólogo
Foto: Reprodução/YouTube/Mateus da Rosa – Lenda Amazônica apresentada pelo boi Garantido no Festival Folclórico de 2018