Amazônia e seu imaginário fantástico (parte 2)
Em seu artigo deste sábado, o sociólogo Aldenor Ferreira fala da Amazônia e seu imaginário fantástico, construtor também de um mundo real

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 22/01/2022 às 03:00 | Atualizado em: 22/01/2022 às 12:16
Conforme prometido na semana passada, escrevo, hoje, a segunda parte da fantástica história da cobra grande que viveu no lago do Panauaru, município de Parintins, Amazonas.
Há muitos anos, em uma noite de lua cheia, na varanda de uma bela casa de madeira, às margens do Paraná do Aduacá, para a minha assombração, esta foi a história que me contaram.
De acordo com os anciãos, contadores dessa história, onde hoje é o belo lago do Panauaru, havia uma densa vegetação, uma floresta aquática conhecida na região como aningal. O lago só se formou a partir da saída de algo muito grande de lá, um acontecimento que até hoje ninguém soube explicar.
Após uma rápida chuva, logo depois do meio-dia, o aningal começou a se desprender com estrondos horríveis, arrastando tudo que estava pela frente e indo em direção ao furo, o canal que faz a ligação com o paraná.
O aningal se desprendeu: bancos de matupá (material vegetal parcialmente decomposto que forma blocos como se fossem pequenas ilhas), árvores altas como as mungubeiras, os assacuzeiros, as cacáias, as embaubeiras e capins de toda sorte começaram a deslisar pelas águas em direção ao furo, que era estreito. Mas, nesse dia, o aningal passou e ganhou o paraná.
Começou a descê-lo, indo no sentido da cidade de Nhamundá, levando tudo que encontrava pela frente – nada o detinha. Quando as árvores maiores engatavam nas que estavam às margens do paraná e todos afirmavam que ele pararia, o aningal partia às mesmas e seguia seu curso.
Até aí, tudo bem, argumentam os anciãos, porque em época de cheias dos rios é comum troncos de árvores e bancos de capim aquático descerem os paranás, empurrados pela correnteza em direção a rios maiores, como o rio Amazonas. O problema é que, nesse caso, era um verdadeiro “desfile de árvores, elas marchavam sobre as águas”.
A situação ganhou ares mais bizarros quando o aningal, que percorreu todo o Paraná do Cabori, desde a comunidade do Panauaru, depois o Paraná do Aduacá, até o encontro como o rio Nhamundá, se separou, dividindo-se em dois.
Uma parte entrou para o lago do Bom Jardim e a outra, por incrível que possa parecer, encaminhou-se, contra a correnteza, em direção ao lago Macuricanã. Antes de entrar no lago, lembram os anciãos, esta segunda parte do aningal ficou dois dias movendo-se de uma margem a outra do rio Nhamundá. “Não se via nada, apenas as árvores se movendo de uma margem a outra do rio”.
Um outro ponto enigmático do relato são as marcas deixadas nas margens do furo, verificadas por moradores da comunidade quando as águas baixaram. Segundo eles, havia três marcas no barranco, uma bem próxima ao leito, outra mais acima e, a última, próxima à superfície. Eram verdadeiros rasgos na terra, como se algo grande tivesse passado forçadamente por ali.
“Se algum monstro se retirou daquele lugar não se sabe”, exclama um dos narradores, “mas o fato é que o lago do Panauaru está lá, totalmente limpo, bem como o lago do Macuricanã, que também lá, permanece com o aningal”.
Os narradores concluíram a história afirmando que, provavelmente, algum monstro carregou aquele aningal nas costas e, dos seres que habitam as águas, somente uma cobra grande poderia realizar tal proeza.
Para um deles, a existência de animais monstruosos nas águas é pertinente, pois, por ocasião do dilúvio, que inundou toda a terra nos dias bíblicos de Noé, só morreram os animais que habitavam a terra seca, porém, os que habitavam as águas sobreviveram.
Até hoje, ninguém conseguiu explicar o fenômeno ocorrido, mas, os anciãos, contadores dessa história, afirmaram categoricamente que presenciaram parte do acontecimento, “assistindo ao desfile das árvores sobre as águas”, da própria varanda em que estávamos, enquanto narravam essa história.
Sem dúvida, trata-se de uma história fantástica, ainda que comum no imaginário do povo amazônico. Em uma região de “terras, florestas e águas”, para usar aqui uma expressão do Antônio Carlos Witkoski, essas histórias fazem muito sentido para o povo amazônida.
Conforme assinala Maria Magela Ranciaro no livro Andirá: memórias do cotidiano e representações sociais (2004), “podemos entender essa narrativa como sendo a memória insistindo e resistindo ao tempo, um imaginário que é alimentado pelo fascínio dos mistérios que emanam da própria natureza amazônica”.
Para a autora, trata-se de um imaginário dinâmico, cuja tessitura nos transporta à reminiscência da cultura milenar dos povos indígenas. “O ribeirinho mescla ou sintetiza a junção dessas raças: branco, negro e índio. Apodera-se de uma imaginação criadora que se articula, também, com a esfera da natureza do poético, pois a ela pertence essa função do irreal que é psiquicamente tão útil quanto a função do real […]”.
De fato, a vida dos seres humanos não é apenas a vida biológica, os símbolos, as crenças, os valores, as normas, os costumes, as tradições – noutras palavras, a cultura imaterial, da qual falei no último texto, possibilita irmos além de uma mera sobrevivência material: ela nos faz existir de fato, nos torna seres completos.
Na Amazônia, essa “imaginação criadora que se articula, também, com a esfera da natureza do poético”, é uma forma de reprodução, de resistência, de manutenção da vida material e simbólica dos povos tradicionais que habitam aquela região.
Como assinalado por Ranciaro, as questões do imaginário “interagem, se relacionam e permitem a cada caboclo [amazônico] o enriquecimento de sua alma, da sua vida, apesar das grandes dificuldades que eles enfrentam cotidianamente”.