A técnica social do bolsonarismo

Dassuem Nogueira mostra um estudo que aponta a dimensão desse fenômeno. | Leia o artigo da antropóloga

A técnica social do bolsonarismo

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 13/11/2024 às 11:06 | Atualizado em: 13/11/2024 às 11:07

A antropóloga Letícia Cesarino tem se dedicado a pesquisar o bolsonarismo enquanto fenômeno sociotécnico, a partir da experiência de observar grupos de wattsapp, facebook, instagram, telegram e o extinto twiter desde as manifestações de 2013.

No mês de junho daquele ano, milhares de pessoas saíram nas ruas de São Paulo para protestar contra o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus, o que desencadeou uma série de protestos com pautas diversas em todo o país.

Porém, Cesarino não estuda apenas o conteúdo que circula em meios digitais, mas a estrutura que dá forma a eles. Pois, para a antropologia, todo processo social possui uma dimensão técnica.

Por exemplo, como ocorreu na relação entre a invenção da prensa mecânica de Gutenberg, a Reforma Protestante e o longo período de guerras de religião que se seguiu na Europa no século 15.

Nesse sentido, ela estuda como as novas mídias potencializaram os efeitos do bolsonarismo.

Para a antropóloga, demandas sociais que não costumavam aparecer, mas que sempre existiram, passaram a ser mobilizadas por meio de performances que circulam em looping entre influenciadores e influenciados nas redes sociais.

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A estrutura técnica

Cesarino entendeu que tais mídias foram desenhadas para operarem em looping cognitivos entre agentes humanos (usuários) e maquínicos (sistemas algorítmicos).

Nessas mídias, é possível medir o alcance e a efetividade das performances em tempo real.

Os algoritmos são sequências de instruções programadas para alcançar um objetivo específico.

Ficam mais complexos quanto maior a previsão de cenários possíveis a executar. Mas, possuem uma quantidade finita de programação que forma um sistema. Quando um programa trava, é porque ele recebeu uma instrução que não foi programado para fazer.

Por isso, Cesarino afirma que o controle e a decisão do impacto de conteúdos não pertencem a influenciadores ou influenciados, pois não há conteúdos nem base social fixos em sistemas algorítmicos.

O uso intencional desses sistemas se dá por tentativa e erro dos atores envolvidos nas performances políticas nas redes sociais.

A tentativa, e realização, de construir um ambiente virtual com um certo viés político é um efeito inesperado pelos criadores das plataformas.

A anti-estrutura social

A dimensão social do fenômeno, sugere a antropóloga, vem de diferentes demandas sociais que encontram aspectos em comum e terminam dando forma ao bolsonarismo.

Cesarino identificou que o público bolsonarista se forma em torno de demandas de ressentimentos e exaltação do senso comum de usuários das novas mídias.

O bolsonarismo político encontra audiência em fenômenos variavelmente rotulados de populismos, conspiracionismos, pseudociências, negacionismos, neoliberalismos.

Assim, não é que as novas mídias expliquem o bolsonarismo como fenômeno social. Ocorre que elas permitem um ambiente técnico apropriado que faz a mediação entre tais fenômenos.

As sociedades passam, periodicamente, por momentos em que refletem sobre si mesmas.

Nesses momentos, vem à tona elementos que contestam as estruturas que controlam o centro da vida social.

Nas sociedades ditas ocidentais, tais contestações recaem, principalmente, sobre a ciência, comunicação, sistema jurídico, educação e democracia.

Assim, dimensões da realidade marginalizadas ou diminuídas pelo que é considerado normal pela maioria dominante, encontram espaço para outras possibilidades e, assim, para uma mudança estrutural.

Por isso, Cesarino afirma que esses momentos em que a sociedade reflete sobre si possuem um caráter anti-estrutural.

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A técnica social do bolsonarismo

Cesarino identifica três principais tipos de engrenagens:

  • ambiente (sistemas algorítmicos),
  • ação tática de influenciadores e grupos organizados, e
  • usuários comuns.

Os sistemas algorítmicos permitem que as contestações aflorem, rapidamente, na forma de públicos (populismos, conspiracionismos, negacionismos, pseudociências) que discordam do modelo normativo de democracia e da esfera pública liberais.

“No caso da aliança neoliberal-conservadora expressa, no Brasil, pelo bolsonarismo, o inimigo comum contra o qual se unem esses segmentos seria um público dominante “socialista” na economia e “progressista” nos costumes”, Cesarino (2019).

Por entenderem que o centro da vida social (ciência, comunicação, sistema jurídico, educação, democracia) está corrompido pelo inimigo, a única solução possível seria a ocupação e regeneração completa do sistema.

Do ponto de vista dos que se autodenomimam conservadores, eles são uma expressão revolucionária que se rebela ao que eles chamam de “marxismo cultural”.

Nesse sentido, o bolsonarismo se diferencia do direitismo conservador tradicional pelo seu caráter antiestrutural e “revolucionário”.

O fato de os sistemas algorítmicos atuarem em looping, produz a impressão de que suas demandas representam a “vontade do povo”. E, se é assim, tornaria dispensável o aparato político-representativo vigente na democracia.

Porém, os sistemas algorítmicos são compostos de códigos que precisam ser acionados na prática por usuários (humanos ou robôs) para funcionar.

Por isso, conclui Cesarino, à medida que são acionados, ajudam a dar forma aos processos sociais, direcionando-os em um certo viés e não outro.

Assim, para encorpar os diferentes públicos bolsonaristas, os sistemas algorítmicos são acionados em certas direções, de maneira contínua e combinada, para produzir engajamento necessário para a criação de um ambiente que valide suas demandas.

A autora* é antropóloga.

Foto: reprodução/blog conversa afiada