A reengenharia da vida

Ferreira Gabriel, Por Thomaz Antônio Barbosa*
Publicado em: 23/05/2020 às 15:06 | Atualizado em: 23/05/2020 às 15:10
… O acaso vai me proteger quando eu andar distraído [2]
O coronavírus chegou ao Brasil mais acentuadamente no período da páscoa e isso é emblemático. Talvez tenha sido para chamar a atenção da sociedade moderna, mas com resquícios de antiguidade tão enraizados, sobre a necessidade de descobrir uma nova forma de se relacionar coletivamente no mundo. Viver com limites, com regras, com respeito ao todo e as individualidades, renascer.
Durante esse tempo eu vi minha família se confinar no quarto do apartamento e ver a vida passar através da janela do décimo andar do isolamento social. Mesmo assim todos os dias minha filha foi ao trabalho. Suas irmãs não deixaram de ir à faculdade, estudando com o telefone celular na mão e uma pilha de livros e cadernos. Exatamente há dois anos fui a uma reunião na escola em que elas estudavam ouvir a senhora gestora, troglodita de tudo, acentuar orgulhosa, baseada em uma lei municipal, a proibição do uso desse aparelho em sala de aula.
A escola e o legislador precisam ainda aprender – com nossos alunos – a enxergar o mundo pelas novas modalidades de se relacionar e adquirir conhecimento. Necessitam eles urgentemente perceber como é possível ir à feira sem sair de casa, trazer um banquete para a mesa do jantar. A “educadora” e o “parlamentar” precisam deixar a caverna. Nada de essencial deixou de ser feito em isolamento social, além do abraço no “vô” e na “vó”, na melhor amiga, no melhor colega de trabalho.
Não deixamos de ir à missa, ao terço, ao culto e às adorações, porém ficamos sem a comunhão, sem o ato solene de dar às mãos, de conversar na hora da saída da igreja. Aproveitei para largar a vida sistematizada e tentar aprender com o ócio a zerar o homem velho que existe em mim e trazer à tona um cidadão integrado ao tempo presente, fazendo uso das novas tecnologias para construir um mundo novo e não para perpetuar minhas ancestralidades.
Todavia, me resta o vazio dos que se foram e dos meus apegos. Como é difícil tirar de dentro da gente algo que se imaginava eterno. Eu não percebi o tempo correr. Certamente, “podia ter trabalhado menos, ter visto o sol se por”[1]. Ultimamente andei ocupado, sequer me olhava no espelho, por isso não percebi que não sou mais um garoto, que preciso adequar minhas atitudes à idade. É isso que esperam de mim, é isso que tenho para ofertar.
O sol do equador visto da janela é esplêndido, o supermercado na madrugada é mais calmo, mais amigo, aprazível, as moças são mais amáveis, solícitas, a rua tem mais poesia, a cidade tem um quê de literatura, nada se compara a esse ócio inspirador. Por enquanto é ficar em casa, parado, pensando, ouvindo a vida passar silenciosa. Porém, quero voltar à rua, vibrante, renovado, conquanto apurado em um passado tão próximo e tão irreparável.
Como será a vida sem Glória, Tereza, Valdir e José? Um mundo delivery, sem palco, sem praça, sem circo, sem palhaço? Como será viver sem alguém que me bloqueou nas suas redes sociais e sem aquele que levianamente eu bloqueei. Como será um amigo sem voz, sem direito à respostas, a desabafos e a desaforos até porque rir e chorar faz parte da nossa existência. Eu vou continuar amando a vida, é esse o meu desafio. Aprender é um ato de sobrevivência!
Foto: BNC Amazonas
[1] Epitáfio, Sérgio Brito / Titãs.
[2] Idem.
*O autor, apresentador do programa “Conversa Franca”, no BNC Amazonas, é contador, formado em ciências contábeis pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), MBA em marketing pela Universidade Gama Filho e mestrando em ciências empresariais na UFP/Porto, em Portugal.