A (ir) racionalidade de Salles
Ele e toda a caterva que compõe o atual governo ainda estão presos à ideia de progresso, a uma visão utilitária da natureza e ao pensamento hegemônico dos séculos XIX e XX.

Neuton Correa, Por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 01/05/2021 às 09:48 | Atualizado em: 01/05/2021 às 09:48
A racionalidade ambiental de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, não é a mesma de Rachel Carson, Ignacy Sachs, Enrique Leff, Clóvis Cavalcanti, Chico Mendes, Greta Thunberg e de tantos outros.
A racionalidade dele é irracional.
Salles é o típico representante do atraso. Ele e toda a caterva que compõe o atual governo ainda estão presos à ideia de progresso, a uma visão utilitária da natureza e ao pensamento hegemônico dos séculos XIX e XX.
No século XXI, sociedades e governos de nações verdadeiramente prósperas não operam mais assim.
Nesses países, consolida-se, portanto, a cada ano, uma nova racionalidade ambiental, que vai além da apodrecida racionalidade capitalista.
De acordo com o sociólogo alemão Herbert Marcuse, “no desenvolvimento da racionalidade capitalista, a irracionalidade se transforma em razão: razão do desenvolvimento desenfreado da produtividade, conquista da natureza, ampliação da massa de bens, mas irracional, porque o incremento da produtividade, do domínio da natureza e da riqueza social se transformam em forças destrutivas”.
Enrique Leff, em perspectiva similar, mas num enfoque mais abrangente, afirma que “as sociedades ‘modernas’, tanto capitalistas quanto socialistas, seriam produtivistas e antiecológicas”.
Isso quer dizer que, nessa perspectiva, a natureza não se encaixa à racionalidade econômica, sendo, portanto, insustentável.
Assim, a busca de uma racionalidade ambiental tem, como objetivo, detectar aqueles elementos que possam se constituir em base de uma estratégia produtiva alternativa – onde a natureza se integre à lógica produtiva, acrescenta o sociólogo mexicano.
Portanto, não há mais espaço para a (ir)racionalidade ambiental de Salles e sua claque. É consenso entre as nações verdadeiramente desenvolvidas que a questão ambiental não pode mais ser desconsiderada sob nenhuma circunstância.
Porém, na mente anacrônica do antiministro, é preciso explorar, por exemplo, os recursos da floresta amazônica, pois isso traria ganhos econômicos em duas frentes: na exploração de madeira e, finalizada essa exploração, na expansão da fronteira agrícola, na mineração, na criação de gado etc.
Nesse sentido, ele deve pensar com os botões dele: é preciso avançar, “passar a boiada” e eliminar os “entraves” que por lá teimam em permanecer. “Entraves” esses que são, na verdade, povos tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos e outros).
Entretanto, ao contrário de Salles, o pensamento e a relação dessas “gentes” da floresta estão em consonância com a questão ambiental característica ao século XXI. Afinal, está mais do que demonstrado que o modo de vida contemporâneo é claramente insustentável.
Vivemos o paradoxo da modernidade, temos tecnologia de ponta de um lado e lixo do outro. Aumento da produtividade agrícola e industrial de um lado e poluição provocada por essas mesmas atividades de outro, como resíduos que contaminam as fontes subterrâneas de água, por exemplo.
Nesse sentido, os povos da floresta não são entraves, pelo contrário, são, na verdade, a gênese para um novo modelo de sociedade, para o estabelecimento de um novo contrato – desta vez, um contrato natural, para utilizar a ideia do filósofo francês Michel Serres.
Baseados, então, no conhecimento, na perspectiva teleológica e na relação simbiôntica com a natureza que esses povos mantêm, uma sociedade ecossustentável pode surgir. Afinal, como ponderou Hannah Arendt, “o mundo – artifício humano – separa a existência do homem de todo ambiente meramente animal; mas a vida em si, permanece fora desse mundo artificial, e através da vida o homem permanece ligado a todos os outros organismos vivos”.
Não há, portanto, outro caminho: a vida se liga, se mantém, pela vida. A (ir)racionalidade ambiental de Salles e do governo que ele representa é anacrônica, constituída a partir da conjunção de negacionismo, revisionismo e canalhice. Essa perspectiva não é apenas irracional, mas também criminosa, anti-humana e antiplaneta. É uma (ir)racionalidade de morte.
*Sociólogo