A pupunha para a Amazônia

Mais do que um fruto essencial na cultura amazônica, a pupunha é símbolo de ocupação, resistência e adaptação dos povos indígenas ao longo dos séculos.

Adrissia Pinheiro, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 09/02/2025 às 10:44 | Atualizado em: 09/02/2025 às 10:44

Na Amazônia brasileira, comemos pupunha cozida com sal como uma iguaria de nosso rico repertório de café da manhã.

Fora da região, a pupunha é sinônimo de palmito, que é vendido em conservas. Só quem teve o privilégio de comer o palmito fresco da pupunheira sabe a especiaria que é.

A safra da pupunha costuma ser entre dezembro e março. Mas, os frutos começam a ser vistos em mercados, feiras, carrinhos de ambulantes e nos sinais de trânsito já em novembro.

Tal como o açaí e o tucumã, contudo, o ciclo de reprodução da pupunha também se alterou em consequência do aumento de temperatura, após dois períodos seguidos de forte estiagem e vazante dos rios.

Neste ano, o fruto começou a circular nas feiras de Manaus em meados de janeiro.

A pupunha, assim como o açaí e o tucumã, também filhos de palmeiras, conta uma história de ocupação da Amazônia.

São frutos da tecnologia dos povos indígenas do passado e importante bem cultural para todos.

Leia mais

Açaí da Amazônia chega ao cardápio da Bacio di Latte

A outra pupunha

A pupunha é o fruto da palmeira cientificamente nomeada como Bactris gasipaes Kunth e seu processo de domesticação e adaptação por povos indígenas da Amazônia resultou em um conjunto de raças locais.

Esse processo estaria fortemente ligado à importância cultural da pupunha para os povos indígenas amazônicos, o que é observável pela dispersão de tipos selvagens e domésticos ao longo do vale amazônico.

O processo de domesticação feito a partir da Amazônia, que teria se iniciado na região do rio Ucayali (Colômbia), resultou em uma pupunha rica em amido, ideal para fabricação de bebidas fermentadas.

Achados arqueológicos indicam que a bebida era usada em festas e rituais há milênios.

Já o processo observado na Amazônia brasileira tem origem na região do rio Madeira e resultou na pupunha que conhecemos hoje.

Seus frutos são maiores, mais carnudos e oleaginosos.

Tal tipo não é propício para a fermentação e os achados arqueológicos nessa região indicam que sempre foi consumido como fruto cozido.

Seu processo de domesticação seria recente, provavelmente, há menos de mil anos.

Leia mais

O tucumã tem valor e custa caro

A origem da pupunha

Diferentes povos têm a pupunha como um alimento de grande importância nutricional, perdendo apenas para culturas como a mandioca e a banana, que dão frutos o ano inteiro.

As pupunheiras dão frutos por cerca de quatro meses.

Para os dessanas, povo do alto rio Negro, a pupunha foi trazida do mundo invisível dos peixes para o mundo visível dos homens por Gaín Pañan.

Esse ancestral era metade homem e metade periquito, por isso, na língua dessana, a pupunheira é traduzida como palmeira das aves.

Aqui a pupunha aparece como matéria importante da criação do mundo humano.

O mito é contado no curta metragem de animação “Gaín Pañan e a origem da pupunheira” (1995).

Cenário e personagens são baseados nos desenhos de Feliciano Lana, do povo dessana, autor do livro “Antes o mundo não existia”.

Leia mais

Abiu, fruta da época

Um marcador de humanidade

Em “A queda do céu” (2015), sobre a visão yanomami do mundo, o mito sobre a origem da pupunha tem como fundo a separação entre humanos e animais na criação do mundo.

No tempo mítico, animais e humanos não eram diferentes.

Assim, Ayakora-riwë (gente pássaro) e Haya-riwë (gente Veado) eram vizinhos e seus filhos eram casados.

Porém, Haya-riwë não conhecia a verdadeira pupunha. Ele chamava o tucumã de pupunha.

Quando seu genro, filho de gente-pássaro, lhe trouxe a verdadeira pupunha colhida no roçado de seu pai, Haya-riwë se percebe enganado, sai correndo e se transforma em veado.

O pano de fundo desse mito informa sobre a aquisição do cultivo da pupunha como bem cultural. A pupunha selvagem já existia, mas a pupunha cultivada em roça é um atributo humano e não animal.

Por isso, Haya-riwë, se transforma em veado ao perceber que não conhecia a verdadeira pupunha.

Aprendizado do cozimento

Para os matsés, do vale do Javari, quando Abú criou o mundo e os homens, esqueceu de dizer quais eram os alimentos que os matsés (gente) poderiam comer.
Por isso, a ave mutum levou um dos primeiros matsés para uma viagem e lhe deu vários frutos para comer, ele achou todos deliciosos.

Todavia, quando o mutum lhe trouxe um cacho de pupunha, ele achou ruim porque ele a comeu crua.

Então, dessa maneira, o mutum lhe ensinou a fazer um pote com barro, a atear fogo e colocar a pupunha para cozinhar no pote. E matsés achou a pupunha cozida boa para comer.

A partir daí, o mutum seguiu lhe mostrando frutos e raízes que deveria cozinhar para comer.

Para os matsés, a partir da necessidade de comer pupunha cozida, se aprendeu a fazer pote e fogo e a cozinhar outros alimentos.

Como é possível observar, a partir desses mitos, a pupunheira está presente nas mitologias trazendo ensinamentos importantes sobre como ser um humano.

Graças à importância alimentar e cultural que nossos ancestrais e seus descendentes, indígenas e caboclos, dão à pupunha, essa árvore se espalhou pela Amazônia e segue nos alimentando.

*A autora é antropóloga.

Foto: divulgação