A morte dos outros não interessa
Leia o artigo de opinião do sociólogo Aldenor Ferreira no BNC Amazonas

Ferreira Gabriel, por Aldenor Ferreira
Publicado em: 06/03/2021 às 09:06 | Atualizado em: 01/07/2022 às 23:21
No texto “A Elite do Atraso” (2017), o professor Jessé Souza, ao revisitar Gilberto Freire e retirar de suas obras aspectos importantes para a compreensão da formação social e psicológica da sociedade brasileira, nos brinda com uma síntese sofisticada acerca de como a sociedade brasileira possui uma raiz cultural sádica.
Ele afirma que: “precisamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sadomasoquista – no sentido de uma patologia social específica, onde a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer transformam-se em objetivo máximo das relações interpessoais – que Gilberto Freyre interpreta a semente essencial da formação brasileira”.
Essa “semente essencial” é o sadomasoquismo e a malvadeza, traços psicológicos cruéis deste povo que habita o “triste trópico”, deste lugar chamado Brasil.
No decorrer de mais de 300 anos de escravidão, a sociabilidade nacional foi erigida em bases violentas, onde a perversidade e a crueldade deram o tom. Esse sadismo foi muito bem percebido por Freyre, vejam esse trecho: “Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de nascido e criado, depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros. Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do sistema escravocrata”.
Vejam essa outra passagem, escrita por Machado de Assis em seu romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, citado por Freyre no texto “Casa Grande e Senzala” e reproduzido por Jesse Souza na obra supracitada: “[…] um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer a minha mãe que a escrava é que estragara o doce “por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava-lhe mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, – algumas vezes gemendo, – mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um – “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: – “Cala a boca, besta!”. Essas passagens dizem muito a respeito da constituição dos traços sociopsicológicos da sociedade brasileira, do seu comportamento e da sua abordagem diante da dor alheia.
Diante das mortes por Covid-19 no país um importante político nacional nos mandou “engolir o choro”. Ele já tinha “exortado” anteriormente a não termos um comportamento de maricas diante das perdas. Não satisfeito, nos mandou “parar de mimimi e de frescura”.
De alguma forma, a negação da tragédia sanitária nacional causada pelo novo coronavírus, cujo número de mortes chegou a 262.770 mil essa semana, é a materialização do sadismo, da falta de empatia, é a negação da negação. Mas afinal, quem foi que morreu? Quem se importa? São apenas números, gente sem rosto. Não, não são! Morreram mães, pais, filhos, filhas, netos, netas, amigos, amigas, todos com rosto, CPFs, endereço e telefone. Famílias de sangue e/ou famílias por afinidade foram arruinadas pelas mortes. E daí? A morte alheia não os comove. Há setores perversos dentro dessa sociedade de herança escravocrata. Eles são indiferentes às perdas, ao sofrimento de outrem, suas respectivas personalidades foram forjadas em um ambiente idêntico ao do menino Brás Cubas e de seu pai condescendentecondescendente. Esse povo é mau, sua gênese é má, suas sementes serão más. Sem as suas doses diárias de sadismo, eles mesmos morrem.
*o autor é sociólogo.
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Foto: Altemar Alcantara/Semcom