A morte do amo do boi
No caso dos amos, elas servem para desafiar com criatividade e liberdade seu adversário

Neuton Correa, Por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 04/05/2024 às 00:00 | Atualizado em: 04/05/2024 às 08:13
A 57ª edição do Festival Folclórico de Parintins é disparadamente a campeã de controvérsias. Depois da bisonha toada “Parintina Rainha”, cuja letra não cabe mais no século XXI, resolveram sepultar o item amo do boi ou, no mínimo, torná-lo irrelevante e dispensável.
Na prática, o Regulamento para o ano de 2024 do Festival de Parintins, mesmo com a mudança realizada nesta semana, simplesmente proibirá algo que existe desde a origem do Boi-Bumbá nesta cidade no século passado: os versos de desafios proferidos pelos amos. É com muito pesar que constato que uma tradição secular cedeu lugar para a instrumentalização burocrática.
É importante ressaltar que o desafio dos amos tem raízes históricas fincadas no nordeste brasileiro. O seu DNA está no repente, uma forma de poesia musical tipicamente nordestina conhecida pelo improviso e por seu diálogo desafiador.
O novo regulamento despreza toda essa história e castrará toda a criatividade dos defensores deste item. Aliás, um dos itens responsáveis pela manutenção das raízes nordestinas do Boi-Bumbá de Parintins.
Desprezo
O regulamento de 2024, mesmo com a mudança de última hora, fruto da pressão popular, é insensato. É notável no texto o desprezo dos elementos históricos e antropológicos que cercam o item amo do boi.
Ora, senhoras e senhores, é do conhecimento de todos que as principais ferramentas de trabalho, quase as únicas, tanto do Apresentador quanto do amo do boi, são as palavras. É com elas, com o bom manejo delas, que estes itens existem e compõem o espetáculo. Neste sentido, qualquer restrição ao uso das palavras, certamente, limitará e empobrecerá a performance dos respectivos amos.
Além disso, os responsáveis pela formulação do regulamento de 2024 do festival de Parintins parecem ter esquecido ou negligenciado as palavras de Graciliano Ramos. No texto “A arma do escritor é o lápis”, o romancista brasileiro deixa claro que “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
As palavras
É exatamente isto! As palavras existem para dizê-las, para comunicar, para expressar sentimentos. No caso dos amos, elas servem para desafiar com criatividade e liberdade seu adversário. Não estou com isso advogando a liberdade para ofensas ou para o cometimento de crimes de racismo ou de homofobia pelos amos. Isto também não cabe mais no século XXI, mesmo na festa dos bois.
É importante que se diga que não há inimigos no festival de Parintins. Há apenas adversários momentâneos durante a apresentação dos bois-bumbás. Não há guerra de torcidas nem violência. Aliás, esta é uma das singularidades e a riqueza desta festa.
Com efeito, o regulamento, claramente, restringe o uso livre das palavras. Mas como os amos irão fazer versos criativos e improvisados com as palavras cerceadas? Isto não existe. Agora, os amos terão que ficar medindo palavras na arena?
Defendo que nenhum artista pode ter seu processo criativo limitado por regras. Artista é artista. Não é um burocrata ou um político para se prender a formalidades durante seu processo criativo. Desde que não cometa crimes, o céu deve ser o limite para eles(as).
A cultura popular
Além disso, é crucial discernir entre o que é genuinamente popular e o que é fabricado para se tornar popular. A cultura é uma mercadoria preciosa e os produtos da indústria cultural, por exemplo, são direcionados ao público em geral, mas não podem ser considerados obras populares no sentido de terem suas raízes no povo.
É totalmente diferente do que ocorre em Parintins, cujo Festival nasceu da criatividade e inventividade do povo parintinense. A festa dos bois de Parintins é, portanto, uma expressão da cultura popular, justamente por este motivo, ou seja, por ter nascido diretamente do povo.
É crucial, ainda, lembrar que o Festival de Parintins foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil em 2015 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Portanto, não deveria sofrer tantas mudanças.
Conclusão
Como mencionado, os bois de Parintins têm raízes históricas profundas. Raízes não devem sofrer cortes, mas, sim, preservadas, pois são elas que sustentam a árvore. Se começarem a cortar, a cercear e alterar as características principais de determinados elementos dos bois, como já fizeram com o ritmo das toadas, a originalidade e a perenidade do festival estarão em risco.