A Igreja Cristã e a música

A ideia de que um determinado ritmo ou acorde pudesse ser coisa de Satanás tem origem na preocupação da Igreja com letras e estilos

A Igreja Cristã e a música - título de artigo do sociólogo aldenor ferreira

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 21/10/2023 às 00:40 | Atualizado em: 21/10/2023 às 00:40

A Igreja Cristã desempenhou um papel muito importante no desenvolvimento da música ocidental. Todavia, a relação foi sempre de tensão, marcada por contradições, avanços e retrocessos. 

Na esteira do nascimento e desenvolvimento da Modernidade, processo que Max Weber definiu como o avanço da racionalização da sociedade ou “o desencantamento do mundo”, a música na Europa incorpora a ciência e a técnica. Assim, evolui, diferenciando-se sobremaneira da música praticada em outros lugares da terra.

Neste âmbito, os mosteiros se tornaram centros de aprendizagem e produção musical. Foi nesse espaço, por exemplo, que o canto gregoriano se desenvolveu. Muitas das primeiras composições musicais escritas em partituras eram hinos cristãos. Eis aí um exemplo de avanço. 

Por outro lado, na esteira de seu desenvolvimento musical, ritmos e acordes, como os dissonantes, foram satanizados. O trítono – intervalo de três tons inteiros entre duas notas –, que gera uma tensão desconcertante, foi considerado satânico e proibido. Eis aí um exemplo de retrocesso. 

A ideia de que um determinado ritmo ou acorde pudesse ser coisa de Satanás tem origem na preocupação da Igreja com letras e estilos que poderiam ser vistos como promotores do pecado. Trata-se, na verdade, de uma enorme contradição, pois, se por um lado a Igreja incorporou a racionalidade, a matematização e a métrica em suas composições, por outro, proibiu e censurou certos tipos de ritmos e músicas em diferentes momentos da sua história.

Nos períodos do Renascimento e do Barroco, houve movimentos de censura que condenaram músicas e óperas consideradas blasfêmias. Um exemplo conhecido é o da ópera “Orfeu” de Claudio Monteverdi que fora proibida em algumas cidades.

Reforma Protestante

Com o advento da Reforma Protestante, liderada por Martinho Lutero no século XVI, teve início outro momento na história da música cristã. Lutero valorizou o canto congregacional e escreveu hinos que se tornaram parte fundamental do repertório do nascente movimento protestante.

Sem dúvida, a Reforma Protestante foi fundamental para o avanço técnico da música cristã. A partir do século XIX, com as divisões e subdivisões que ocorreram no devir da Reforma, muitas igrejas surgiram e mantiveram a tradição do canto congregacional e a preocupação com a formação de músicos e cantores dentro das congregações. 

Com efeito, desde os primórdios até agora, a Igreja Cristã, católica ou evangélica, não superou a dicotomia música secular versus música sacra ou cristã. Durante o desenvolvimento da música clássica ocidental, por exemplo, muitos compositores escreveram tanto música sacra quanto música secular. Esta dicotomia se tornou mais acentuada e clara à medida que a música se desenvolveu como um todo. 

É válido ressaltar que as atitudes em relação à música variam de acordo com a tradição religiosa e as interpretações individuais. Os cristãos evangélicos, por exemplo, veem a música como uma forma de expressão espiritual que reflete o relacionamento com Deus. Neste sentido, não pode haver para eles nada nas letras que fuja deste propósito.

A relação entre a Igreja Cristã e a música é, portanto, complexa e multifacetada. Ao longo dos séculos, evoluiu refletindo e incorporando as mudanças na sociedade, na religião e na cultura. Todavia, apesar das contradições, dos avanços e dos retrocessos, é justo afirmar que esta instituição foi e ainda é relevante no âmbito do desenvolvimento da arte musical em todo o mundo. 

*Sociólogo