A ideologia do folclore dos bois de Parintins vermelhou?

No mundo bovino, torcedores e pessoas ligadas aos bois têm repetido a frase: “Saudade do tempo em que a gente só brincava de boi”

Mariane Veiga, por Dassuem Nogueira

Publicado em: 16/05/2024 às 21:09 | Atualizado em: 16/05/2024 às 22:45

Tem algo que chama atenção nos discursos em torno das polêmicas pré-festival de Parintins em 2024.

No mundo bovino, torcedores e pessoas ligadas aos bois têm repetido a frase: “Saudade do tempo em que a gente só brincava de boi”.

Minha leitura sobre isso é de que os bois, como entes da sociedade atual, carregam em si as questões do seu tempo.

Recentemente, falou-se bastante em duas pautas nascidas de movimentos sociais: a apropriação cultural e sexualização do corpo feminino, vindas, respectivamente, de um movimento negro e um certo feminismo.

Faço essa ressalva porque nem o movimento negro nem o feminismo são movimentos uníssonos. Eles são vários.

A frase expressa uma postura anti-ideológica em relação ao que seria a função dos bois de Parintins.

Nessa perspectiva, a festa se resumiria a entreter. Contudo, é necessário redimensionar o que é ideologia e o que é o boi-bumbá.

A definição mais simples de ideologia é um conjunto de convicções filosóficas, sociais e políticas de um indivíduo ou grupo.

Ideologia é um nome dado a algo que existe na realidade. Afinal, pessoas e grupos têm ideias, convicções, visões de mundo. E se ligam umas às outras em torno do que têm de comum entre si.

Os bois de Parintins (não somente Garantido e Caprichoso) são frutos de pessoas que se uniram por ter propósitos semelhantes.

Como diz Chico da Silva na toada Vermelho, é “a ideologia do folclore”.

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Uma ideologia para viver

Ideologia também é um conceito marxista.

Karl Marx, o idealizador do socialismo, criou os conceitos de ideologia burguesa e ideologia proletária ou socialista. Para ele, são elas que sustentam a luta de classes no modelo econômico capitalista.

Por ser um termo esquerdista, ideologia é associada a esse conjunto de pensamentos.

Atualmente, no mundo ocidental, ocorre o que tem sido chamado de polarização ideológica, entre progressistas e conservadores, esquerda e direita.

Contudo, ocorreu um processo de moralização dessas ideologias. Elas foram transferidas de seu sentido original nos campos da política e da economia para o campo da moral cristã.

Assim, passaram a representar o bem e o mal para parte significativa da sociedade. Quem se compreende conservador, vê o mal nas ideias progressistas e vice-versa.

Por isso, o levantar de bandeiras associadas a ideologias de esquerda no festival de Parintins tem gerado desaprovação em parte dos torcedores de ambos os bois.

Há ainda aqueles que não se sentem confortáveis no levantar da poeira das polêmicas ideológicas por não gostar do conflito, preferindo evitá-los.

Na moral cristã, o conflito é comumente associado ao mal, é o “espírito de contenda”.

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A temática social no boi

A brincadeira de boi-bumbá nasceu fazendo deboche de uma diferença social entre os donos da fazenda e seus empregados.

O auto do boi é uma crítica social.

Um empregado, um homem negro, ousa comer a língua do boi preferido do dono da fazenda para satisfazer o desejo de sua esposa, uma mulher negra grávida.

Para ressuscitar o boi, recorrem a um padre e ao médico, que falham. Quem resolve o caso é o pajé, um sacerdote indígena.

Ou seja, a versão popular contraria a premissa dominante de que são a religião e a ciência dos senhores de posses os que têm o poder da solução.

Embora tido como brincadeira, coisa que não é séria, o boi-bumbá e outras danças dramáticas são espaços de crítica social dos que, por muito tempo, não tiveram outro lugar para expressá-la.

O boi-bumbá fala do que é importante em cada época.

Com o tempo, as temáticas sociais no boi de Parintins foram se atualizando. Se não tivessem feito isso, não seriam o que são hoje.

Contudo, nosso momento histórico é que passa por um período no qual é confuso saber pelo quê se manifestar.
Há muita informação e desinformação. Há muito a aprender e a desaprender.

Repare que, interessantemente, o boi azul, outrora “boi da elite”, é que está levantando as bandeiras vermelhas em 2024.

Mas, tudo ainda é bastante frágil. Basta olhar para a arena e se perguntar onde estão as mulheres?

Olhem para o portal e vejam os compositores entrando, a banda, batucada/marujada, maestros, vaqueirada… Elas são minoria em tudo.

O boi de Parintins sempre foi feito por muitas mulheres, é refúgio para muitas pessoas lgbtqia+, gente de todas as origens e credos.

É um espetáculo que cresceu em torno da celebração artística das culturas indígenas.

Quero dizer com isso, que o boi-bumbá não precisa “vermelhar”.

Ideologia não é um conceito restrito à esquerda. Porém, os bois podem ser mais justos com suas próprias histórias e com o seu presente.

*A autora é antropóloga.

Arte: Gilmal