A farinha como elemento identitário

"Tomar um caldo de peixe sem farinha é algo equivalente a ingerir um alimento de forma forçada"

A farinha como elemento identitário

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*

Publicado em: 11/02/2023 às 10:26 | Atualizado em: 11/02/2023 às 10:26

Para nós, amazonenses, a farinha de mandioca é um elemento identitário. Assim como o uso do “x”, extremamente carregado em nossa fala, esse alimento nos denuncia em qualquer parte do mundo.

A farinha de mandioca é consumida no Brasil todo. Todavia, é no Norte que ela assume o caráter de alimento imprescindível e insubstituível do cotidiano.

Na verdade, no Amazonas, a farinha de mandioca torrada no forno à lenha é mais que um alimento, é um símbolo. Posso dizer que se trata de um produto que faz parte da cultura material e imaterial das gentes que habitam a maior floresta tropical do mundo.

Caro(a) leitor(a), vou lhes contar algo que aconteceu comigo e que corrobora o enunciado deste texto.

Ao sair de uma aula que ministrei para o curso de Engenharia Ambiental, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), resolvi dar carona a dois jovens estudantes deste curso. Saímos juntos da sala em direção ao carro e começamos a ter um diálogo de reconhecimento, pois estou há pouco tempo na instituição e eles ainda não me conheciam.

No caminho, o diálogo se deu em torno de perguntas para obter informações uns dos outros, procedimento normal em um processo de interação social, conforme lecionou Erving Goffman. Como definido por ele, “a vida em sociedade é constituída por interações sociais, nas quais comunicações são estabelecidas pelas expressões transmitidas e emitidas reciprocamente”.

Nesse processo de diálogo descobri que o rapaz e a moça eram amazonenses. Imediatamente eu disse que também era de lá. Nesse momento, a alegria deles e a minha tomou conta do automóvel. Certamente esse encontro, no interior de São Paulo, não é algo comum.

A conversa prosseguiu e eu disse a eles que era natural de Parintins. Ao ouvirem isso, logo eles proferiram a frase que todo parintinense que reside fora do Amazonas e do Brasil ouve: “Parintins, a terra de Garantido e Caprichoso!”

Indagando-os um pouco mais, descobri que a moça era natural de Manaus, nascida em uma comunidade no rio Tarumã. Era ribeirinha, portanto. Já o rapaz era natural de São Gabriel da Cachoeira. Com muito orgulho ele complementou dizendo que era indígena da etnia Tukano.

Confesso que nesse momento tive que segurar as lágrimas, afinal, uma ribeirinha e um indígena estão cursando engenharia ambiental em uma das melhores universidades do país. E eu estava ali, como seu professor.

Isso implica dizer que os investimentos em educação superior feitos pelos governos do Partido dos Trabalhadores ainda estão rendendo ótimos resultados. A UFSCar, mesmo com todos os cortes de gastos promovidos pelo governo do capitão terrorista, tem mantido a política de cotas para estudantes indígenas e tem recebido muitos deles, vindos de várias regiões do Brasil. Um motivo de orgulho para nós, professores desta importante universidade brasileira.

O diálogo prosseguiu, mas ainda no nível de certa formalidade. Foi então que decidi me aproximar ainda mais deles e fiz a pergunta mágica: mas e a farinha? Foi uma explosão de risos e confissões. Os dois falaram de forma síncrona: está muito difícil!

De fato, é muito difícil ficar sem a nossa amada farinha de mandioca. É sofrido. É doloroso. À guisa de exemplo, tomar um caldo de peixe sem farinha é algo equivalente a ingerir um alimento de forma forçada, apenas para se manter vivo, sem prazer.

Com efeito, para além desse detalhe, foi importante perceber no brilho de seus olhos e nos seus sorrisos, um sentimento sincero de alívio e alegria, afinal, eles encontraram um igual, da mesma “tribo”, que entende perfeitamente as suas angústias culinárias. Encontraram alguém para falar o “amazonês” e puderam compartilhar um pouco as lembranças do “rio mar” e sua singular e gigantesca diversidade ictiofaunística.

Contudo, foi a farinha, ou melhor, a ausência dela que, por um instante, nos tornou um só. Como dito, a farinha é o nosso elemento identitário, nossa herança ameríndia, cabocla, ribeirinha. Ela não é um simples alimento. Ela é a própria alma dos amazonenses. O produto que faz nossa vida ter sentido. Ela é a nossa teleologia.

Nesse sentido, viva o Amazonas. Portanto, viva a farinha de mandioca. Viva esse grande encontro de amazonenses.

*Sociólogo