A derrota
A brincadeira de manja virou um interesse em colar no outro que pudesse lhe oferecer alguma vantagem. Já não pensava na sua infância como uma dádiva da existência

Mariane Veiga, por Lúcio Carril
Publicado em: 08/10/2023 às 20:34 | Atualizado em: 08/10/2023 às 20:42
Ele nasceu entre trapos, pelas mãos de uma parteira.
Era um menino pequeno, cabeludo, pele morena e não demorou para abrir os olhos arregalados.
Lhe foi dado um nome comum, como se chamam as crianças nascidas nos beiradões, nos bairros populares, nas favelas e morros.
Foi crescendo brincando na rua, empinando papagaio, brincando de manja e barra-bandeira.
Subia nas árvores, roubava frutas nos quintais das vizinhas, apertava companhias das outras casas e corria. Era um menino comum, como todo menino da periferia.
Na escola, nunca foi o mais estudioso, mas era perspicaz, com olhar sorrateiro e rápido no entendimento das coisas.
Cresceu. Se tornou adulto, mas aquela vida comum lhe trouxe alguns traumas. Não queria mais ser comum. Agora ele corria atrás da fortuna, do espetáculo, da evidência. Sua vida virou uma correria à procura do ter, deixando o ser numa condição secundária. O ser se tornou apenas um puxadinho na sua vida. A qualquer hora alugaria a um estranho.
Assim se fez . A brincadeira de manja virou um interesse em colar no outro que pudesse lhe oferecer alguma vantagem. Já não pensava na sua infância como uma dádiva da existência. Os pequenos traumas foram virando grandes traumas. Precisava ficar rico para superar a pobreza que guardava na memória.
E pois não é que ele ficou rico. Fez fortuna. Seus amigos agora só era gente bacana, com ouro no pescoço e pulseira do “Sinhozinho Malta”. Ele mesmo ostentava carrões e sapatos caros.
Agora vivia como gente de novela da Globo e falava como gente de novela mexicana, naquela dublagem fajuta para o português.
Chegou lá. Sim, conseguiu a fortuna. Mas continuava angustiado, sofrido, pois descobriu que foi derrotado no final da sua história.
Já não tinha mais amigos do peito. Não via flores nos jardins floridos. Seus dias de lua cheia tinham ficado na infância. Seu dia era cinzento. Só via o sol através do reflexo nas suas pulseiras de “Sinhozinho Malta”.
Não tinha poesia na sua vida. Seu olhar era cego e sequer conseguia ver o sorriso de uma criança. Caminhava com a cabeça erguida, mas não via o horizonte nem o entardecer da primavera.
No final da sua vida reconheceu sua derrota. Já não tinha ninguém para abraçar, nem amar, pois amor lhe faltava no coração.
Pobre homem, derrotado pela ganância e pelo desamor.
O autor é sociólogo.
Foto: Reprodução/imagineme.com