A culpa não é sua, mas, sim, do neoliberalismo!
"A fala de FHC, na verdade, representa ecos do pensamento de uma elite nacional que tem ódio de tudo aquilo que não é espelho"

Neuton Correa, Aldenor Ferreira*
Publicado em: 26/02/2022 às 06:09 | Atualizado em: 26/02/2022 às 06:09
No dia 11 de maio de 1998, o então presidente da república Fernando Henrique Cardoso, em uma entrevista, chamou os funcionários públicos de vagabundos. Segundo ele, a culpa pelo déficit da previdência vinha da aposentadoria precoce desses trabalhadores.
Assim como a proposta de reforma da previdência de 2019, a proposta de FHC para resolver esse problema atacava violentamente os direitos dos trabalhadores brasileiros. O discurso era exatamente o mesmo que ouvimos dois anos atrás: era preciso reformar para cortar privilégios, pois só assim o país poderia voltar a investir e, consequentemente, a crescer.
O desenvolvimento ulterior ao tema da previdência mostrou que era tudo falácia, pois mesmo com a reforma de 1998, o Brasil continuou estagnado. Como uma das consequências daquela conjuntura, FHC não conseguiu eleger seu sucessor, José Serra, que foi derrotado, em 2002, por Luiz Inácio Lula da Silva.
A fala de FHC, na verdade, representa ecos do pensamento de uma elite nacional que tem ódio de tudo aquilo que não é espelho – para citar, aqui, um verso de uma canção de Caetano Veloso. Ele não foi o único, afinal, a chamar trabalhadores de vagabundos, visto que é algo recorrente no Brasil. Essas frases são ditas quase sempre por representantes de classe, como deputados, senadores e lideranças empresariais.
Todavia, indago: o que estava, de fato, por detrás daquela manifestação preconceituosa de FHC? Muitas coisas, mas, hoje, quero me ater a duas especificamente: a ideologia neoliberal e a culpabilização do sujeito, pois, a partir do golpe jurídico-político de 2016, os discursos e as ações políticas de cunho neoliberal retornaram com força aos espaços decisórios de poder da nação brasileira.
Antes, porém, de avançar no objeto de discussão propriamente, é preciso fazer uma breve contextualização acerca do neoliberalismo. Como a própria palavra já descreve, trata-se de um novo liberalismo, cujos principais teóricos certamente são: Ludwig Von Mises, Milton Friedman, Ludwig Von Hayek e Walter Lipman que, desde a década de 1940, já teorizavam acerca da necessidade de refundação do liberalismo clássico.
Milton Friedman, por exemplo, é, no meu entendimento, o maior opositor do keynesianismo – doutrina econômica desenvolvida por John Maynard Keynes, cujo centro está no papel intervencionista do Estado como principal agente desenvolvedor e garantidor de uma ordem econômica sólida e perene.
Não custa lembrar, foram as ações de cunho keynesiano que salvaram o capitalismo da bancarrota a partir da crise econômica desencadeada com a quebra da bolsa de Nova York em 1929. Isso está fartamente registrado no anais da história.
De todo modo, a partir da década de 1970, o “Estado keynesiano” começou a dar sinais de enfraquecimento, fundamentalmente, com o advento da crise do petróleo de 1971. Isso criou as condições sócio-históricas para o crescimento do neoliberalismo, como dito, que já vinha sendo pensado desde o final da primeira metade do século XX.
Pode-se dizer que o ápice de implementação do neoliberalismo ocorreu nos Estados Unidos e na Inglaterra a partir, fundamentalmente, da década de 1980. Os principais arautos dessa ideologia política e econômica nesses países foram, respectivamente, Ronald Reagan e Margaret Thatcher que, a partir de um amplo programa de flexibilização das leis trabalhistas e de privatizações, levaram a cabo essa proposta.
Feita essa breve contextualização, passemos, então, para a análise de um componente do neoliberalismo que julgo essencial para reflexão de todos/as: a culpabilização dos sujeitos.
Juntamente com a ideia de livre mercado, de empreendedorismo, de privatização dos serviços públicos, de redução do Estado, dentre outras, a responsabilização ou a culpabilização das pessoas também faz parte do neoliberalismo, porém, esse componente não aparece de forma explícita como os outros, ainda que esteja lá, de forma latente.
A responsabilização do sujeito no neoliberalismo tende a se dar em forma de discurso de ódio. É uma cantilena bem conhecida, dita e repetida até mesmo pela classe trabalhadora, infelizmente. Esse discurso pode aparecer de diferentes maneiras, como “a culpa é sua ‘vagabundo/a’, que não estudou”, “que não trabalhou o suficiente”, “que não foi sábio para empreender”, “que não poupou”, enfim, “que não lutou aguerridamente para obter êxito na vida”.
Essa dimensão da culpa se estende para outras esferas da vida social, não ficando restrita apenas ao mundo do trabalho ou às relações puramente econômicas. Ela se apresenta, também, como reforço das estruturas carcomidas da velha sociedade patriarcal.
A dominação masculina, por exemplo, pode ser vista em casos de violência contra a mulher, em que há a culpabilização da vítima por ser “fraca” e tolerar um sujeito violento. Em casos como esse, além da dependência emocional e até mesmo do receio de o caso evoluir para o feminicídio, muitas vezes é o esposo violento que detém o poder financeiro do lar, o que inviabiliza que a mulher saia da situação, mas fica escamoteado no discurso da culpabilização.
Partindo desse pressuposto, então, de que a culpa é sempre do sujeito, a culpa do estupro, por exemplo, passa a ser da roupa curta e provocante que a moça vestia naquele dia, bem como a culpa da gravidez indesejada é exclusivamente da mulher que não se preveniu. Em outro âmbito, vemos também a culpa de uma prisão indevida ser da vítima que, por ser negra e estar segurando um guarda-chuva, acabou “confundindo” os policiais no momento da blitz.
Portanto, no contexto do pensamento neoliberal em sua plenitude, a culpa de a previdência ser deficitária, era, para o governo FHC, e ainda é, para a atual gestão federal, dos trabalhadores, principalmente dos funcionários públicos. Por isso, ainda é comum chamá-los de “vagabundos”.
Entretanto, perante todas essas questões, afirmo que a culpa não é dos sujeitos em nenhum dos casos! Isso é mentira!
Não posso deixar de apontar, porém, que esse tipo de assertiva é uma “grande sacada” do neoliberalismo, pois tanto a culpabilização das pessoas, principalmente quando individualizada, quanto a transferência, para os sujeitos, de qualquer tipo de fracasso do Estado acaba por retirar do sistema e de suas “estruturas estruturantes”, para citar Bourdieu, a causa real e o verdadeiro responsável pelos problemas de desigualdade social, de gênero, de luta de classe, de ausência de igualdade de oportunidades, de acesso à justiça etc.
Ainda a esse respeito, mas em outra direção, um discurso do neoliberalismo que também é falacioso diz respeito à ideia de liberdade. A priori, o sujeito tem liberdade de ir e vir, de empreender e até mesmo de ficar rico. Todavia, se no percurso de sua vida ele/a não conseguir êxito financeiro, é porque não se esforçou o suficiente para tal. Não teve mérito – frase mágica que sai da boca do neoliberal o tempo todo. Nada mais tolo do que isso.
Como bem lecionou Durkheim, a sociedade é muito mais do que a soma de atos individuais; ela possui uma “firmeza” ou uma “solidez” comparável às estruturas do ambiente material. A economia, a política, a cultura são “estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes”, novamente, citando Bourdieu.
Nesse sentido, por mais que os sujeitos sejam dotados de volição/vontade e, de fato, eles/as são, não deixam de estar inseridos/as em um sistema, em uma estrutura social perversa, opressora, castradora, sustentada e radicalizada em sua perversidade justamente pelo neoliberalismo que, para além de ser uma doutrina econômica é, antes de tudo, uma ideologia política.
Portanto, a culpa do seu desemprego, do seu aluguel caro, da sua precária alimentação, da sua saúde debilitada, do seu analfabetismo digital, dentre outras, não é sua, acredite. A culpa é da política neoliberal, que é perversa, excludente e fraudulenta.
*Sociólogo
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado, em 25/02/2014