A BR-319 e o ambientalismo anti-humano 

O isolamento não garante a conservação, visto que o crime organizado não se importa com a ausência de infraestruturas

A BR-319 e o ambientalismo anti-humano 

Neuton Correa, por Aldenor Ferreira*

Publicado em: 22/03/2025 às 05:40 | Atualizado em: 22/03/2025 às 05:40

O texto do historiador indiano Ramachandra Guha, intitulado “O biólogo autoritário e a arrogância do anti-humanismo”, traz importantes reflexões. Elas ajudam a entender a cruzada de certos biólogos contrários à recuperação do asfalto da BR-319. 

Nesse texto, Guha critica a visão conservacionista que defende e, de certa forma, até exige, de forma autoritária, que a natureza seja protegida a qualquer custo, mesmo que isso implique no deslocamento ou exclusão de comunidades de povos tradicionais que dependem, por exemplo, das florestas e dos rios para garantir a sua sobrevivência material e simbólica. 

O texto de Guha se tornou um clássico. Nele, o autor indiano defende que os projetos conservacionistas sejam mais justos e inclusivos, que valorizem os conhecimentos tradicionais locais e que levem em consideração as singularidades e especificidades edafoclimáticas dos países para a construção de modelos de conservação endógenos, em vez de mimetismo dos projetos que, no limite, acabam impondo modelos excludentes e desumanos. 

Conservação anti-humana 

A conservação defendida principalmente por biólogos da conservação é anti-humana. Isso se dá porque, além de não incluir as pessoas nos projetos, ainda as torna inimigas do meio ambiente. Sobre a posição conservacionista em relação às florestas, Guha afirma: 

“[…] o inimigo do meio ambiente é o caçador e o camponês que vive na floresta e é incapaz de enxergar seu próprio bem, e o nosso. Esse pensamento (ou preconceito) fundamentou inúmeros projetos de conservação ao redor do mundo visando o estabelecimento de áreas protegidas, expulsando seus habitantes, com pouco respeito ao seu passado e futuro, em nome da herança global da diversidade biológica”.

A análise de Guha se baseia na realidade vivida em seu país, a Índia. Mas ele aponta que essa realidade é vivenciada em todos os países do chamado Terceiro Mundo. De fato, ele tem razão. O Brasil já viveu e continua a viver essa dura realidade. Desde a criação de Parques Nacionais e demais Unidades de Conservação, as populações tradicionais são quase sempre desconsideradas e, também, têm seus direitos ancestrais e culturais violados. 

Na verdade, trata-se do desperdício da experiência. Os povos tradicionais possuem vasto conhecimento dos ecossistemas em que vivem. A incorporação desses saberes seria muito mais benéfica a qualquer projeto de conservação do que a sua exclusão. 

Além disso, já há comprovação científica no âmbito da arqueologia e da paleobotânica de intervenções humanas na constituição de paisagens. A Floresta Amazônica, por exemplo, não é apenas uma obra da natureza. Ela é também, comprovadamente, fruto de ações humanas. 

BR-319: impaciência e preconceito 

Conforme o próprio título do texto deixa claro, Guha critica o biólogo autoritário. Para ele, a postura de alguns biólogos que, imbuídos de uma visão cientificista e elitista, desvalorizam o conhecimento tradicional e impõem suas próprias visões sobre a natureza. Nas suas palavras: “Os biólogos da conservação demonstram marcante impaciência em relação aos agricultores e habitantes das florestas, considerados obstáculos ao livre progresso do conhecimento científico”.

É exatamente esse comportamento que temos visto no Amazonas em relação à recuperação do asfalto da BR-319: autoritarismo científico, impaciência, má-fé e preconceito ou, como já escreveu Lúcio Carril, terrorismo ambiental. Os biólogos estão no controle das discussões, apresentando suas verdades absolutas a partir de pesquisas cujo financiamento não se sabe ao certo de onde vem e por quais interesses.

Nesse âmbito, há uma enorme assimetria nos estudos acerca das questões ambiental, social e econômica relacionadas à BR-319. Enquanto biólogos e afins possuem financiamentos e canais abertos para a divulgação de seus resultados de pesquisa, cientistas sociais, historiadores, geógrafos, economistas e afins não possuem nenhum.   

Conclusão

Concluo afirmando que, no tema da recuperação do asfalto da BR-319 – e eu chamo de recuperação porque a rodovia funcionou plenamente com asfalto por muitos anos –, é preciso que a interdisciplinaridade e a transversalidade sejam os elementos norteadores dos estudos e das análises. Nesse processo, não deve haver “autoridades” constituídas atuando como definidoras das ações. 

Além disso, não é possível a exclusão do humano desse processo. Afinal, são dezenas de comunidades que dependem da rodovia para produzir a sua subsistência. São centenas de caminhoneiros que cruzam a estrada todos os dias e, por fim, serão as populações inteiras do Amazonas, de Rondônia e de Roraima que se beneficiarão do projeto de revitalização da rodovia. 

O poder público não pode tomar suas decisões baseadas apenas nas análises biológicas e ecológicas acerca do empreendimento. Essas, apesar de serem importantes, tendem sempre a excluir os humanos do processo, a ignorar realidades diferentes presentes em nosso país e a desconsiderar o conhecimento e a relação das comunidades locais com os ecossistemas que as cercam.

Para uma região biossocialmente complexa como a Amazônia, é preciso a construção de um modelo econômico que alie desenvolvimento e conservação. Ou seja, é preciso a criação de um ecodesenvolvimento e de uma etnoconservação. Para isso, necessita-se de infraestrutura adequada. Noutras palavras, não existirá conservação de fato se as pessoas não tiverem acesso à energia elétrica, à água potável, a redes de esgoto, rodovias seguras, portos, aeroportos, sistema de telefonia, acesso à educação e à saúde. 

Isolamento e conservação

O isolamento não garante a conservação, visto que o crime organizado não se importa com a ausência de infraestruturas. Aliás, os crimes ambientais são facilitados quando a infraestrutura e a presença do Estado são diminutas. Um bom exemplo disso é a própria Amazônia e seus garimpos ilegais, as grilagens de terras, o tráfico internacional de drogas, a exploração ilegal de madeiras etc. 

Portanto, é preciso que haja a compreensão de que a natureza, nisto insisto, sem a presença do humano e das infraestruturas necessárias para que haja qualidade de vida, será apenas um espaço desprovido de perspectiva teleológica, será apenas um espaço anti-humano. 

*Sociólogo

Arte: Gilmal