A Baixa da Xanda é quilombo afro-indígena!
A criação do Garantido não se deu apenas para pagar a promessa ou exclusivamente por motivos lúdicos. Sua criação foi um grito de afirmação identitária, cultural e existencial

Neuton Correa, Por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 14/06/2025 às 00:01 | Atualizado em: 13/06/2025 às 23:13
Na semana passada, a Fundação Cultural Palmares, instituição vinculada ao Ministério da Cultura, responsável pela preservação e valorização da cultura afro-brasileira, emitiu a Portaria n. 128, que reconheceu e certificou a Baixa da Xanda como comunidade remanescente de quilombo.
Localizada no município de Parintins/AM, a comunidade é o berço original do Boi-Bumbá Garantido. O bumbá foi criado em 1913 por Lindolfo Monteverde, primogênito de dona Alexandrina(Dona Xanda) e neto de Dona Germana. A história da comunidade tem início nas últimas décadas do século XIX. Ocorreu quando Germana, mulher negra escravizada, junto com seu esposo, se estabeleceu no local.
Herdeira do casal, a filha Alexandrina não apenas permanece nas terras como também se torna referência de liderança comunitária. Assim, abre caminhos para que outras pessoas negras libertas e indígenas se estabelecessem, resistissem e se reconhecessem naquele território.
Caldeamento de cultura
A partir da liderança e do protagonismo de dona Xanda, o que vai ocorrer na Baixa é um caldeamento de cultura e resistência que perdura até hoje. Pode-se declarar, de forma sincera, que a Baixa é um espaço de aquilombamento afro-indígena amazônico, legitimamente reconhecido pela Fundação Cultural Palmares.
Nesse espaço, a Dona Xanda compartilhou seus saberes em artesanato, agricultura e espiritualidade. A Baixa cresceu como um refúgio, onde se formavam laços, se fincavam raízes e se transmitiam tradições. Nesse contexto, quando seu filho Lindolfo Monteverde criou o Boi Garantido, ele o fez com a ajuda de muitas mulheres que aprenderam com Xanda a costurar, a bordar, a modelar e, principalmente, a sonhar e a resistir.
Nesse contexto, o Boi Garantido nasce no terreiro de uma mulher preta amazônida, como cumprimento de uma promessa feita por Lindolfo Monteverde a São João Batista. Ou seja, o surgimento do boi acontece em uma comunidade onde a fé católica se entrelaçava com a espiritualidade afroameríndia e com a pulsação ancestral dos tambores do Lundu e do Gambá.
Por isso, a criação do Garantido não se deu apenas para pagar a promessa ou exclusivamente por motivos lúdicos. Desde o início, a sua criação foi um grito de afirmação identitária, cultural e existencial. Nesse contexto, a luta contra o racismo se entrelaça com as festas de São João, São Pedro, São José, Santo Antônio e São Benedito. A fé do povo da Baixa é sincrética. É tambor e ladainha; boi-bumbá e reza de erva. É promessa e poesia.
A ressignificação do termo perreché
Ao longo do século XX, mesmo diante do avanço urbano da cidade de Parintins e da persistência do preconceito social e racial, a Baixa da Xanda se manteve viva. Os estigmas eram diversos. Um dos mais marcantes era o uso do termo “perreché” – ou “pé rachado” –, expressão carregada de aporofobia e que revelava, de forma explícita, o desprezo dirigido às populações pobres, negras e rurais da cidade.
Além disso, é importante frisar que, mais do que um simples apelido, o termo perreché refletia a lógica elitista e excludente que estruturava – e ainda estrutura – as relações sociais na cidade. No entanto, para além do desdém, o povo da Baixa ressignificou o termo. Com ele, transformou em símbolo de pertencimento, avançando na busca por reconhecimento e reparação histórica.
Mobilização pelo reconhecimento
Esse movimento coletivo de reivindicação e de busca por reconhecimento da área como um quilombo, agora um direito adquirido. Também é fruto da mobilização do povo da Baixa e, principalmente, é o resultado da tomada de consciência de si, da compreensão de sua própria história e dos processos sociopolíticos que cercam o tema da cultura afro-brasileira.
A mobilização ganhou força nos últimos anos, especialmente a partir de 2023, quando a Comissão de Artes do Boi Garantido decidiu levar ao Bumbódromo a figura alegórica de Dona Xanda. O casal de antropólogos Alvatir Carolino e Socorro Batalha, ambos integrantes da Comissão, apontaram que estavam diante de dados concretos para que a comunidade fosse reconhecida e certificada como Quilombo pelo Estado brasileiro.
Alvatir e Socorro ajudaram na mobilização e no levantamento da documentação. A ação motivou ativistas, artistas e acadêmicos. De acordo com os antropólogos, reuniões foram realizadas, pesquisas aprofundadas, documentos reunidos e a primeira Reunião de Articulação do Quilombo da Baixa da Xanda aconteceu em novembro de 2024, dentro da Semana da Consciência Negra.
Coração vermelho da Amazônia
Nesse processo de mobilização, é fundamental reconhecer também os descendentes de Dona Xanda: João Batista Monteverde e Maria do Carmo Monteverde (netos), Dé Monteverde (bisneto), Suzan Monteverde (tataraneta) e tantos outros que, dia após dia, constroem memória, poesia, toadas, teses e textos de militância.
Nessa mesma trilha, nomes como Tadeu Garcia, Chico da Silva e Fred Góes deixaram marcas profundas com sua arte, enquanto as juventudes negras e indígenas – como Tito de Souza Menezes e Idelrin Klinger – seguem transformando tradição em resistência viva e atuante.
Atualmente, a Praça da Baixa da Xanda e o Mercado Lindolfo Monteverde são marcos dessa resistência viva e atuante que se recusa a desaparecer. O “porto dos pretos” é também o porto da esperança. Ali, onde nasceu o Garantido, também nasceu um modo de existir que não separa arte de luta, tambor de território, boi de identidade. A Baixa é o coração vermelho da Amazônia, onde se dança, se planta, se cura, enfim, onde se é feliz.
Um reconhecimento legítimo
O reconhecimento da Baixa da Xanda como comunidade quilombola feito pela Fundação Cultural Palmares é legítimo e juridicamente fundamentado. Todas as exigências previstas no processo de certificação foram integralmente atendidas.
A decisão da Fundação está amparada pelo Decreto n.4.887/2003, que regulamenta o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal. Esse dispositivo reconhece o direito à propriedade definitiva das terras às comunidades remanescentes de quilombos, cabendo ao Estado a responsabilidade pela emissão dos respectivos títulos. Trata-se, portanto, de um reconhecimento cultural e histórico, e não de um simples gesto político.
A portaria de certificação transcende o valor documental: ela simboliza o reconhecimento de mais de um século de presença, resistência e ancestralidade expressas no toque dos tambores afro-indígenas da Baixa. Ao mesmo tempo, representa um marco inspirador para outras comunidades quilombolas da Amazônia, encorajando processos de autoidentificação, mobilização e luta por direitos historicamente negados.
Considerações finais
O reconhecimento da Baixa da Xanda como quilombo marca também a volta do Estado brasileiro como indutor de cultura e como ente principal de promoção das reparações históricas relacionadas às populações tradicionais do nosso território. A Fundação Palmares que, na última quadra presidencial, atuava contra a cultura afro-brasileira, voltou a ser uma instituição de Estado e não de governo.
Por fim, eu, como “louco torcedor”, digo: na Baixa da Xanda, tradição não é passado. É semente. É gesto. Enquanto houver batuque, poesia e luta, a Baixa seguirá viva, não só como lugar, mas como ideia. Uma ideia teimosa, vibrante, vermelhae branca, com um coração na testa.