A Amazônia e os obstáculos epistemológicos
Entendo que poucos lugares do mundo acumularam tantas opiniões e pré-noções, portanto, conhecimentos mal estabelecidos, como a Amazônia

Mariane Veiga, por Aldenor Ferreira
Publicado em: 12/06/2021 às 17:38 | Atualizado em: 12/06/2021 às 17:41
Gaston Bachelard, no texto A formação do espírito científico, propôs uma psicanálise do conhecimento – em que o seu desenvolvimento é analisado através de suas condições internas, psicológicas –, bem como a noção de obstáculos epistemológicos.
O filósofo francês enumera alguns desses obstáculos que atuam como impeditivos para a pesquisa científica, tais como o obstáculo da realidade, do senso comum e da opinião, que são causas de estagnação, regressão ou inércia do conhecimento, segundo ele.
Para Bachelard, “o ato de conhecer dá-se contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos e superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização”.
Baseado nessa premissa, entendo que poucos lugares do mundo acumularam tantas opiniões e pré-noções, portanto, conhecimentos mal estabelecidos, como a Amazônia.
Dos relatos de Vincent Pinzón, passando por naturalistas, viajantes, peregrinos, comerciantes, literatos, entre outros, todos, de alguma forma, empreenderam análises e discursos sobre a região. Entretanto, conforme pontua Paul Ricoeur (1989), “explicar não é compreender”, visto que “a compreensão remonta à correlação de conceitos num processo amplo e deve vir primeiro”.
Isto posto, vejamos, de forma resumida, três conhecimentos mal estabelecidos sobre a região: 1) a análise histórica do processo de desenvolvimento econômico por meio de uma categoria explicativa e genérica chamada “ciclo”; 2) a Amazônia como pulmão do mundo; 3) a Amazônia como santuário intocado.
A análise histórica do desenvolvimento econômico amazônico é geralmente feita a partir de diversos ciclos, como o ciclo das drogas do sertão, do cacau, da castanha, da borracha, da juta/malva, da Zona Franca de Manaus e outros.
Todavia, conforme Renan Freitas Pinto (1982) coloca, dividir e subdividir a história da Amazônia em ciclos de produtos nos impede de esclarecermos alguns pontos principais a serem analisados nesses processos, como: quais foram as formas de utilização da força de trabalho? De que maneira era incorporada a mão de obra aos processos de trabalho utilizados nesses diferentes momentos de incorporação da Região ao processo de acumulação do capital?
O ciclo econômico da borracha, por exemplo, sinônimo de prosperidade econômica e de elevação social e cultural da Amazônia, quando abordado noutra perspectiva, revela sua face contraditória. De acordo com Márcio Sousa (2002), o ciclo criou uma cultura extrativista na região, assim como um sistema de exportação e reexportação bastante atrasado, com uma elite mais vinculada à Europa do que ao Brasil.
O segundo conhecimento mal estabelecido é bem famoso e, felizmente, já desconstruído, apesar de ainda permanecer, de certa forma, no imaginário do senso comum. Trata-se da hipótese da Amazônia como pulmão do mundo.
Apesar de toda a grandiosidade de seus 5.015.067,749 km², correspondentes a cerca de 58,9% do território brasileiro, segundo o IBGE (2020), junto aos 25 mil km de rios navegáveis, que formam a maior bacia hidrográfica do mundo, e à maior floresta tropical, que retêm dióxido de carbono, o principal gás de efeito estufa, não é correto dizer que a Amazônia é o pulmão do mundo.
A Amazônia nunca foi o pulmão do mundo devido a um mecanismo simples. O oxigênio nela produzido é consumido ali mesmo, ocorrendo, portanto, menor liberação desse gás vital na região quando comparada às algas cianofíceas que são, essas sim, responsáveis pela produção de 55% do oxigênio do planeta.
O climatologista Carlos Nobre, em entrevista a um importante veículo de comunicação do país, afirma que “a Amazônia não altera muito o balanço de oxigênio”, pois mesmo que retire anualmente “até dois bilhões de toneladas de gás carbônico da atmosfera, através da fotossíntese”, ela emite apenas “0,001% do oxigênio do planeta”, que correspondem a 1,5 bilhões de toneladas de oxigênio.
Por fim, temos o conhecimento mal estabelecido da Amazônia como natureza intocada, como um santuário. Mas essa ideia de vida natural selvagem (wilderness) é um neomito, conforme expõe Antônio Carlos Diegues em O mito moderno da natureza intocada (1996).
Diegues afirma que essa noção “diz respeito a uma representação simbólica pela qual existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado ‘puro’ até anterior ao aparecimento do homem”.
Todavia, Eilen (1989), citado por Diegues (1996), aponta que “a natureza em estado puro não existe, e as regiões naturais apontadas pelos biogeógrafos usualmente correspondem a áreas extensivamente manipuladas pelos homens”.
Assim, são muitos os conhecimentos mal estabelecidos ou obstáculos epistemológicos para a compreensão da Amazônia. Nesse sentido, para sua superação, recorrendo novamente à Bachelard, é preciso uma ruptura, ou seja, “pôr em suspenso as pré-construções vulgares e os princípios geralmente aplicados na realização dessas construções”.
Esse processo “implica uma ruptura com modos de pensamento, conceitos, métodos que têm a seu favor todas as aparências do senso comum, do bom senso vulgar e do bom senso científico”, nas suas palavras.
Portanto, a identificação desses conhecimentos mal estabelecidos visando sua superação é condição sine qua non para a análise e a compreensão dos temas relacionados à Amazônia, principalmente nesses tempos de elevado status midiático da região.
O autor é Sociólogo.
Foto: Divulgação