Liberal na economia e conservador nos costumes
Reproduz de forma fidedigna o reacionarismo, o mau-caratismo e a estupidez de uma gente que gosta de se vestir de verde e amarelo, de se enrolar na bandeira nacional, mas que está longe, muito longe de ser, de fato, patriota

Ednilson Maciel, por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 19/04/2021 às 07:43 | Atualizado em: 19/04/2021 às 07:43
Utilizando o teatro como metáfora e a obra do sociólogo canadense Erving Goffman como inspiração, pode-se dizer que há pelo menos cinco anos está em cartaz no “Teatro Brasil” a peça: “Liberal na economia e conservador nos costumes”.
Trata-se de uma tragicomédia, com seções sempre lotadas, cujo recorde de público ocorreu na temporada de 2018. O sucesso da “peça” foi tão grande que influenciou diretamente a eleição presidencial daquele país – cujo nome batizava o teatro –, ajudando a eleger um candidato supostamente liberal e conservador.
Todavia, no mundo real, esse enredo não seria possível, visto que a oposição proposta no título não se sustenta na significação das palavras: “liberal” e “conservador” não são antônimos. Portanto, no que se apresenta, não há verdade, originalidade e fidelidade à história e aos conceitos referentes ao conservadorismo e ao liberalismo, ambos nascidos na Europa entre os séculos XVII e XVIII.
Para além disso, assim como no teatro do absurdo – em que há uma atmosfera de devastação e solidão –, os personagens da peça em questão estão presos a situações sem solução e, forçadamente, executam ações repetidas e sem sentido. Todavia, o que há de interessante na peça, isso precisamos reconhecer, é o figurino do elenco.
Eles abusam dos tons verdes e amarelos. Sem explicar o porquê, o ator principal sempre adentra no palco carregando a bandeira nacional. Enrolado nessa flâmula, ele abre o espetáculo bradando: “sou liberal na economia e conservador nos costumes”.
A plateia, de forma acrítica e lobotomizada, também vestida de verde e amarelo, como se fora um uniforme, aplaude-o fervorosamente. Tanto que esse tal Teatro Brasil, já bem antigo e sem nenhuma obra de restauro nos últimos anos, balança diante do êxtase dos fãs.
Por sua vez, os críticos de teatro afirmam que essa peça apresenta um contrassenso do primeiro ao último ato. Com muito esforço imaginativo poder-se-ia dizer, ao tentar fazer sentido do non sense, que aquele que não é liberal na economia tende a ter uma postura mais estatizante, ao passo que, o antônimo do conservador, aplicado ao sentido social, seria o progressista.
Na verdade, “conservadorismo e liberalismo são duas correntes de pensamento que estão historicamente ligadas, porém, de modo dialético, uma como negação da outra”, como afirma Osmir Dombrowski no texto Conservador nos costumes e liberal na economia: liberdade, igualdade e democracia em Burke, Oakeshott e Hayek.
Não existe, portanto, do ponto de vista conceitual, o liberal na economia e o conservador nos costumes, como prega a peça, visto que um é a negação do outro. Na verdade, alternando cenas de comédia, tragédia e farsa, a produção retrata com fidelidade o pensamento reacionário de parte da população daquele país.
Ainda, os frequentadores assíduos do Teatro Brasil e fãs da peça “Liberal na economia e conservador nos costumes”, como bons reacionários, estão sempre querendo voltar ao passado, reivindicando, por exemplo, a todo momento e por todos os meios disponíveis, o retorno da Ditadura Militar que, por 21 anos, foi o regime de governo adotado nesse Estado que mistura ficção e realidade.
Contraditoriamente, ainda que se digam liberais na economia e conservadores nos costumes, segundo dados do Jornal Valor Econômico de 3 de junho de 2020, “um terço da classe A e B pediu auxílio emergencial”, sendo que “dos pedidos de benefício da alta renda, 69% foram atendidos”.
Esse auxílio, que foi e ainda é fundamental para a sobrevivência de milhões de trabalhadores(as), desempregados(as) e desalentados(as), brasileiros(as), foi descaradamente surrupiado pelos que se prestam a assumir papeis passivos nesse enredo.
Portanto, a metafórica peça apresentada no Teatro Brasil, que tem perdido público a cada ano e em breve deve sair de cartaz, não cumpre com a promessa de representação teatral do conservadorismo e do liberalismo brasileiro.
Na verdade, ela reproduz de forma fidedigna o reacionarismo, o mau-caratismo e a estupidez de uma gente que gosta de se vestir de verde e amarelo, de se enrolar na bandeira nacional, mas que está longe, muito longe de ser, de fato, patriota.
*Sociólogo