Nossa ancilostomose política
A ancilostomose (doença do amarelão) era a causa da eterna preguiça de Jeca Tatu

Neuton Correa, por Aldenor Ferreira*
Publicado em: 11/04/2021 às 06:44 | Atualizado em: 11/04/2021 às 19:56
A inércia de parte da sociedade civil diante da destruição do Estado Democrático de Direito, (garantido pela Constituição Federal de 1988) e dos efeitos nefastos disso para a vida nacional é uma espécie de “Ancilostomose política”.
Para aqueles(as) que talvez não tenham tido contato com a obra de Monteiro Lobato, a Ancilostomose (doença do amarelão), causada por nematódeos das espécies Ancylostoma duodenale e Necator americanus, era a causa da eterna preguiça de Jeca Tatu, personagem criada e eternizada pelo escritor paulista na primeira metade do século XX.
Em 1918, por ocasião da publicação da quarta edição de seu livro, Urupês, Monteiro Lobato declara: “está provado que tens no sangue e nas tripas todo um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte”.
Tal qual a personagem de Lobato, parte da sociedade brasileira está anêmica (amarela), molenga e inerte.
Apresenta uma preguiça inexplicável perante tantas perdas impostas pelo governo de matiz nazifascista do “messias”. Está, portanto, sendo parasitada e não reage.
O desmonte do Estado já impacta diretamente a oferta de educação e saúde pública, assim como a geração de emprego, a habitação, a segurança pública, o saneamento básico, os direitos trabalhistas e previdenciários, o combate eficaz da pandemia, o auxílio emergencial, dentre outras questões fundamentais para a nossa existência como nação.
Porém, diferentemente do Jeca Tatu, que não tinha consciência de que a sua falta de ânimo era causada por nematódeos, a sociedade brasileira sabe quem é o parasita, está ciente de que ele se alimenta de sangue, conhece o tratamento eficaz para, democraticamente, livrar-se dele, mas, inacreditavelmente, permanece inerte.
Paradoxalmente, uma parte significativa dessa sociedade, que não foi contaminada pelo vírus do bolsonarismo boçal, está se deixando infectar pela sua versão nematelminta, ficando também extremamente apática.
Enquanto isso, mais de 350 mil pessoas morreram por Covid-19 no país, não há vacina suficiente para todos, os salários estão congelados, a inflação vem galopando, os cortes para áreas essenciais como saúde, segurança, educação, ciência e tecnologia se aprofundam, o isolamento internacional do país é um dado de realidade e o autoritarismo se agiganta. O que fazer?
A resposta é simples. É preciso purgar, por meio da luta política, os nematódeos que tomaram o poder em 2018. Mas alguém pode objetar-nos e dizer: “mas o que posso fazer? Eu moro no interior, numa cidade pequena e sem relevância no cenário nacional. Se eu gritar daqui, ninguém vai ouvir”. Errado.
Houve um tempo em que o local e o global pouco se conectavam, mas isso mudou nos últimos 30 ou 40 anos, sendo resultado dos avanços nas tecnologias da comunicação e dos transportes.
Além disso, “nosso sistema global de comunicação por satélite, implementado há mais de 30 anos, tornou possível para as pessoas entrarem em contato umas com as outras instantaneamente”, como afirma o sociólogo Anthony Giddens, em seu livro Sociologia.
Assim, com o advento da Globalização, o local e o global não estão mais apartados como outrora. “Isso significa dizer que cada vez mais estamos vivendo num único mundo, e que os indivíduos, os grupos, e as nações tornaram-se mais interdependentes”, continua Giddens.
Ou seja, podemos apreender que o local tem poder para afetar positivamente ou negativamente o global e vice-versa. Nesse sentido, se pararmos para pensar, a pandemia provou isso.
Então, com o mundo cada vez mais conectado, uma ação política feita no âmbito local pode atingir o global em questão de minutos. Logo, se a pandemia não permite manifestações de rua, as manifestações devem ser de outra natureza. Devem ser virtuais, ocorrendo por meio de redes sociais, e-mails para senadores e deputados federais, panelaços, tuitaços etc.
Não há justificativa para qualquer tipo de inércia e de apatia política. Pequenos gestos que manifestem seu posicionamento perante a barbárie valem muito e, mais do que isso, são extremamente necessários. Diante da maior crise política, econômica, institucional e sanitária do Brasil republicano, abster-se é uma Ancilostomose política, é desculpa de amarelão, é preguiça.
*Sociólogo
Arte: Alex Fideles