Diário de uma quarentena | 37º dia, 26 de abril – A vendedora de vestidos

Hoje é domingo. São 20h14.

Exagerei na displicência. Não resisti ficar mais um dia em casa e visitei o meu compadre, Neil.

Fui ajudar o Panta, irmão da Darci, que está com o novo coronavírus e acabei ficando na casa do maestro Neil, que mora a um quilômetro do Panta.

O Panta e muita gente da família dele, que mora tudo perto, no Riacho Doce, Zona Norte de Manaus, estão com sintomas do coronavírus.

O Neil está bem. O Panta é que me preocupa. Sente falta de ar e tem que prover o sustento da família toda, que é grande.

Pegou a doença trabalhando como mototaxista.

Está esperando o pessoal do Estado, que prometeu ir à casa dele colher material para exame.

Número

Hoje o Amazonas registrou 198 novos casos, bem abaixo dos 441 de ontem.

Mas o número de contaminação é assustador: 3.833 em menos de dois meses.

O número de mortos chegou a 304 perdas. Dezessete morreram nas últimas 24 horas.

Socorro que mata

De Parintins, minha cidade natal, veio a imagem do domingo, logo cedo.

Era uma cena com milhares de pessoas formando uma fila que cercava o centro cultural onde os bumbás Garantido e Caprichoso brincam no fim de junho, disputando quem é o melhor no folclore local.

Mas a fila não era para assistir à brincadeira.

Era para obter senhas para receber, na semana, R$ 600 e/ou R$ 200 que os governos federal e estadual prometeram para que as pessoas recuperassem renda durante a pandemia.

Mas, é possível que essa fila esteja provocando novas contaminações e novas mortes pela doença.

Mas a ideia de formar a fila foi exatamente reduzir as mortes. Porque essas pessoas estavam se aglomerando desordenadamente na frente da Caixa Econômica.

Torço para que dê certo.

Notícias que ninguém quer dar

Duas secretárias de Estado, Caroline Braz (Sejus) e Simone Papaiz (Susam) anunciaram que foram contaminadas pela doença.

O deputado estadual Delegado Péricles anunciou que foi contaminado pela Covid-19.

O ex-deputado Miqueias Fernandes morreu acometidos pelo coronavírus.

No Israel Conte, editor do BNC AMAZONAS, escreveu: “Em Manaus, coronavírus mata mãe e dois filhos em seis dias“.

A vendedora de vestidos

Magrinha, de máscara no rosto, a mulher batia de porta em porta na vizinhança.

Acompanhei as visitas que ela fazia enquanto eu olhava na rua à espera do Segundinho.

O Segundo disse que viria almoçar em casa. Marcou para o meio-dia, mas não apareceu até as 14h.

Enquanto isso, aquela senhora magrinha e baixinha se aproximava do portão de casa, lentamente.

Ela segurava umas sacolas nas mãos e uma bolsa no braço.

Foi chegando, até atravessar de vez na minha direção, dizendo:

“Não precisa me evitar nem ficar com medo de mim”.

Até havia pensado numa maneira de lhe pedir que evitasse aquilo.

Se tivesse oportunidade, diria-lhe que ela estava se expondo ao vírus.

Mas ela pediu água, dizendo:

“Eu estou vendendo vestidos. Não estou pedindo nada, senhor”.

A Darci entrou, para pegar a água e eu ensaiei adverti-la, mas ela resolveu me tranquilizar:

“Eu não estou doente não, senhor”.

Nessa hora, irrefletidamente, respondi.

“Meu medo não é ser contaminado, senhora. Meu receio é lhe contaminar, porque eu não estou me sentindo bem”.

Notei que ela se assustou. E eu disse que iria lhe ajudar para voltar para a casa e não ficar andando a esmo.

Mas ela continuava assustada.

Tanto que, quando puxei uma cédula para lhe ajudar, ela pegou o dinheiro, colocou-o numa bolsinha, esfregou as mãos, perguntando:

“O senhor tem álcool por aí?”.

Disse que sim, dei o álcool e ela foi se despedindo sem tomar a água.

E insisti que ela tomasse, e ela de novo pediu álcool. Esfregou as mãos, jogou a água de longe na boca e se despediu, desejando que Deus me abençoasse.

*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas

Arte: Alex Fideles