Diário de uma quarentena | 27º dia, 16 de abril – Bruno, valeu pela torneira
"O Bruno apareceu no portãozinho da cozinha de casa. Entrou com uma torneira na mão"

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*
Publicado em: 16/04/2020 às 22:33 | Atualizado em: 16/04/2020 às 23:30
Hoje é quinta-feira. São 18h33.
A contagem de casos e mortes pelo novo coronavírus no Amazonas, até aqui, não tem sinalizado nenhuma tendência.
Há dia que cresce e há outro que diminui. Ontem, por exemplo, foram divulgados 70 novas infecções, ante aos 209 do dia anterior. Hoje, mais que dobrou em relação ao dia passado: 165 novos casos anunciados.
O número de mortes chegou a 124 e o Estado já responde por 10% do total de óbitos de todo o Brasil, apesar de ter uma das menores populações da federação.
Os hospitais de capital já vivem o caos. Há corpos se acumulando em corredores e clínicas médicas à espera de remoção.
O dia do sai. E do entra
Em 50 dias de crise da doença, o país conta hoje mais 188 perdas e o registro de 2.105 novas contaminações, elevando o total de infecções para 30.425 diagnósticos confirmados e a 1.924 vítimas fatais.
Mas, hoje, os números foram a coisa menos importante na República.
As atenções se voltaram para a demissão do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Ele foi substituído pelo médico Nelson Luiz Sperle Teich, que já se declarou alinhado ao discurso do presidente.
Divididos, aqueles que apoiam o presidente, aplaudiram; os contrários protestaram, mas o que ficou marcado nesse episódio foram as manifestações de brasileiros que bateram panelas nas janelas de seus apartamentos pedindo a saída do governante.
O presidente também hoje voltou a jogar prefeitos e governadores contra a população, prevendo o agravamento da crise econômica provocada pela pandemia, responsabilizando-os pelo que possa acontecer no país no futuro.
A doença no mundo
No mundo todo, a doença já contaminou 2,1 milhões de pessoas e matou 143.725.
Os EUA, maior potência econômica do mundo, tornou-se impotente ao vírus.
Lá, a doença já infectou 667.225 cidadãos. Mais de 33 mil morreram até aqui.
Costumo olhar para lá, para a América do Norte, porque há semelhança no comportamento do chefe da Nação americana com o nosso.
O presidente de lá menosprezou o poder devastador da doença, mas recuou. O daqui não dá sinais de se curvar à pandemia.
Tambaqui para o amigo
Meu querido editor, lembra de que lhe contei na segunda-feira, dia 13, quando ligou, se despedindo e pedindo para que tivéssemos cuidados com seus parentes?
Respondi que seu anjo havia me falado que, ao contrário do que pensava, você estava bem e já se preparando para editar e escrever novos livros e novos capítulos da sua vida.
Já tenho a ideia da imagem de capa: é você, em pé, na frente de uma porta, de bermuda, camisa e máscara brancas, calçando um sapato preto e meias brancas.
Você está com o braço direito levantado e o fotógrafo, propositalmente, quis esconder alguma coisa.
Suponho que tenha sido aquele suporte de bolsa de soro e medicamentos administrados na veia.
Seu anjo voltou a me falar que você continua reclamando da falta de paladar e lembrando do tambaqui que comeu em casa no meu aniversário passado.
Seu anjo também já me falou que sua alta está muito próxima.
Espero que seja logo e, desde já convido você, que num desses capítulos deste diário compartilhe sua experiência.
Acho que os leitores já merecem saber quem você é.
Bruno, valeu pela torneira
Hoje perdi mais um amigo para o coronavírus.
Depois do Sávio, dia 24/03, do Beto, dia 5/04, hoje foi o Bruno Cecílio.
Bruno era filho do Cabo Cecílio, um militar bastante conhecido que morou em Parintins.
O Bruno era alto, forte e jovem. Não tinha completado 40 anos e, aparentemente, estava a distância do grupo de risco.
Conheci ele há pouco tempo por intermédio do Karu Carvalho.
Dias antes de se internar acometido da doença, o Bruno me ligou. Queria conversar comigo. Não adiantou o assunto. Apenas disse que passaria em casa, naquela terça-feira. Cinco dias depois, fiquei sabendo que estava internado, em estado grave.
Nos últimos 12 meses, nos aproximamos bastante por dois motivos: primeiro, convergente, assim como eu, ele gostava de toada de boi bumbá; o outro, divergente: eu defendo o isolamento como proteção ao vírus; ele defendia a vida normal na pandemia.
Este ano, o Bruno me fez duas surpresas.
Em fevereiro, do nada, me ligou e conversamos longamente. Ao fim, ele encerrou dizendo: “liguei só para saber como você estava”.
A outra vez, não tem três meses. O Bruno apareceu no portãozinho da cozinha de casa. Entrou com uma torneira na mão.
Ele mal falou comigo e foi passando para pia da cozinha. E comemorou:
“Eu sabia que daria aqui. Essa torneira é boa, dona Má (Nazilmar Souza, nossa secretária que está dispensada do trabalho até que a pandemia passe). Ela não espalha água e a senhora vai poder puxar ela pra frente, pros lados e pra trás”.
Amigo Bruno, infelizmente, essa doença nos castiga até na hora da despedida. Não poderei fazer como você merece. Mas, se pudesse, agradeceria pela amizade, pelas conversas, pelos planos e pela torneira que nos deu.
Adeus!
*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas
Foto: Reprodução/Facebook