Diário de uma quarentena | 8º dia, 28 de março – Trabalhar e morar no hospital

No capítulo desta quarentena, o diário conta o drama que os profissionais de saúde estão vivendo na rede privada de saúde por causa do coronavírus

Intubação: dois a cada três não resistem e morrem durante o tratamento

Neuton Correa,

De Neuton Corrêa*

Publicado em: 28/03/2020 às 21:19 | Atualizado em: 28/03/2020 às 21:24

Hoje é sábado. São 17h59.

O Amazonas tem agora 111 pessoas infectadas pelo novo coronavírus.

Já não é mais possível saber a origem da contaminação.

Por isso, as autoridades de saúde que passaram a atualizar os dados todas as tardes declararam há pouco que o Amazonas está em estado de contaminação comunitária.

A única morte, em Manaus, nessa guerra, aconteceu no dia 24/03.

No mundo, até aqui, são 659.367 infectados confirmados.

Em todos os continentes já morreram 30.475 seres humanos.

Os EUA têm a maior população contaminada, confirmada.

São 121.117 americanos infectados.

Mas o maior número de mortes está na Itália, que já conta 10.023 óbitos; na Espanha, são 5.826 falecimentos; nos EUA, 517; e o Brasil soma hoje 114 mortos.

Em todo o País, a Justiça tenta desarticular o movimento, que tem o apoio do presidente da República, para as pessoas voltarem às suas vidas normais.

 

Enfim, 14 dias se passaram

Depois do meu confinamento, hoje posso dizer que estou mais distante do contato que supus que poderia ter me transmitido coronavírus.

Foi no dia 14 de março.

Ainda não vivíamos o clima de temor e a onda de cuidados que as pessoas estão tendo para evitar a circulação da doença.

Foi num contato com o deputado federal Capitão Alberto Neto.

Dois dias antes, o Capitão teve encontro com o presidente do Senado, David Alcolumbre.

Quatro dias depois, o senador testou positivo para o vírus.

Foi aí que fiquei preocupado.

Minha cabeça só trazia o meu encontro com o deputado.

Ele falou comigo frente a frente, palmo de distância.

A conversa aproximada era necessária, porque estávamos na festa de lançamento do #Toadas 2020, que agora está suspenso.

Quando quis me distanciar do Capitão, ele ainda me puxou para falar ao meu ouvido.

Ele entrou em quarentena. Eu também.

Duas semanas se passaram e agora posso dizer: dessa eu me livrei.

 

Cuidado com o cuidado

Hoje precisei comprar verduras e frutas, que acabou em casa.

Saquei o álcool gel e fui a um supermercado que fica pouco mais de dois quilômetros de onde moro.

Lá, vi que já há atitudes de extrema preocupação com o risco de contaminação.

Tanto que parei para rir de uma cena que encontrei na entrada do supermercado.

Ali, se formava uma fila. Não tinha muita gente, umas oito pessoas, todas de máscaras.

Mas a preocupação em manter a distância uma das outras fazia com que essa fila ficasse mais longa.

As pessoas estavam dispostas num espaço de cerca de dois metros entre si.

Na hora, nem havia notado que era uma fila.

Só soube disso quando avancei na direção de um depósito de álcool gel que a empresa havia fixado na parede.

Uma pessoa me avisou:

“Tem que entrar na fila”, disse mostrando a espera.

Fui para o fim e de lá fiquei observando o cuidado com o cuidado.

Todos queriam colocar o álcool na mão.

Mas ninguém queria tocar na alavanca que fazia sair o produto.

Uma cliente fechou a mão e, como se fosse socar alguma coisa, empurrou o gel.

Outra pessoa usou uma sacola.

A terceira foi demais.

Era uma mocinha bem baixinha e magrinha.

Não queria tocar o local com a mão de jeito nenhum.

Usou o cotovelo do braço direito.

O problema é que ela não alcançava muito bem a alavanca.

Precisava ficar de pontinha de pés.

E, na primeira vez que o cotovelo alcançou o produto, desperdiçou aquilo que hoje se tornou um dos itens mais procurados no mercado e, também, caro.

A mãozinha esquerda dela não conseguia aparar o gel que saía.

Até que, em mais um salto, o álcool espirrou em seu rosto, quando, ela, enfim, conseguiu se higienizar.

 

Quarentena sem bodó

Temos peixe para a quarentena.

Mas hoje me deu vontade de comer bodó.

Acho que fui sugestionado ontem, quando fui com o Aguinaldo ao lago.

Lá, o pescador disse que não tinha o peixe naquela hora, mas que sábado iria chegar dos bonitos.

Com essa informação, convidei a Darci, de manhã, para a gente atravessar a ponte.

“Pode parar com essa história de estar saindo. Tem jaraqui. Hoje vai ser jaraqui”.

Fiquei triste, mas tive que aceitar a condição.

 

Trabalhar e morar no hospital

Pouco antes de começar a pôr no papel os registros deste capítulo do “Diário de uma quarentena”, recebi uma mensagem de WhatsApp que me contava isso:

“Meu amigo, estamos em pânico aqui no hospital. Há muitos leitos ocupados com pessoas suspeitas de coronavírus. Elas também ocupam leitos de UTI. Não sabemos se realmente têm a doença. Os resultados dos exames demoram até três dias. Mas os sintomas e as tomografias feitas aqui indicam que estão doentes desse mal”.

Respondi com aquela carinha de espanto e ele continuou:

“Noto desespero da direção do hospital”.

“Como assim?”, retruquei.

“Parece que estão se preparando para uma guerra”.

E continuou a relatar:

“Eles estão mudando o atendimento, montando leitos, novos leitos e tudo mais”.

“E vc?”.

“Eu e outros enfermeiros e técnicos, e acho que até os médicos, passaremos a trabalhar e morar no hospital. Alguns locais aqui estão sendo adaptados pra gente não sair”.

“E o que vc acha disso?”

“Não tenho outra escolha. Corro risco de contaminar minha família. Eu tenho que ter essa consciência. Eles vão ter que entender”.

Eu perguntei de que hospital ele estava falando e respondeu:

“Todos os hospitais da rede privada estão assim”.

 

*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas

Foto: Divulgação/Ministério da Saúde

 

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