Diário de uma quarentena | 7º dia, 27 de março – O “a” faz muita falta

Neste sétimo dia de quarentena, o capítulo mostra como o autor tenta evitar aglomerações na hora de fazer compras e flagra como o comércio está funcionando

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*

Publicado em: 27/03/2020 às 21:11 | Atualizado em: 28/03/2020 às 11:44

Hoje é sexta-feira. São 17h20.

Estou com problema no “a”.

O Amazonas conta agora 80 casos de coronavírus, confirmados.

No mundo, 26.865 morreram infectados pela doença.

A Itália bateu hoje um triste recorde no país: 919 mortes pela doença em menos de 24 horas.

Lá já morreram 9.134.

O povo mais infectado do mundo é dos Estados Unidos, que se aproximam dos 100 mil diagnósticos, sendo 97.226 infectados.

No Brasil, o presidente pede para o povo voltar à vida normal, enquanto aqui o governador segue a política de seus outros colegas, de orientar o isolamento social.

Em Manaus, neste momento, comerciantes estão dentro de seus carros em um ato que pede a volta ao trabalho e ao consumo.

São 18h, hora do Angelus.

O Estado reconta os infectados e agora já são 81.

 

Dia de ir ao lago

Fora a rotina, o dia começou com o Aguinaldo Rodrigues (jornalista do BNC) em casa, depois da rádio.

Isso era 8h30.

No dia anterior, ele disse que queria ir à feira, comprar peixes.

Queria uma carona. Ele sabe que sempre, às sextas, costumo reabastecer meu freezer.

Acertamos que sairíamos de nossos confinamentos.

Mas, com a seguinte condição:

“Vamos comprar peixe não em feira, mas no lago”.

E ele:

“Onde?”

“No Cacau Pirêra, na canoa, do outro lado do rio”.

Achei que seria mais seguro estar distante do mercadão da Manaus Moderna e da feira da Panair, onde gosto de ir.

O problema é que nesses dois locais dá muita gente.

Em tempo de coronavírus é melhor evitar.

E fomos recompensados com jaraqui, pacu, acará-açu e tucunaré fresquinhos.

 

Um escudo invisível

Apesar de confiar na sanidade do Aguinaldo, fui evitando-o tanto na ida quanto na volta.

Na saída de casa, por exemplo, entrei no carro sem olhar pra ele.

Eu tinha preocupação que falasse na minha direção e atirasse gotículas de saliva no meu rosto.

Dirigi quase 40 quilômetros sem olhar pra ele.

Fiquei curioso para observar se estava agindo como eu.

Todas as vezes o vi com o olhar fixo na estrada.

Ele também estava desconfiado de mim.

Parecia haver um escudo invisível entre a gente.

O coronavírus mudou velhos costumes nossos de convivência e relacionamentos.

São 18h30.

O Amazonas libera mais uma informação: um homem, de 46 anos de idade, morreu na tarde de hoje com suspeita do coronavírus.

Amostras biológicas foram para o laboratório e o resultado só sai amanhã.

Eu não consigo escrever direito hoje.

A falta do “a” me atrapalha muito.

 

O “a”

Não sei se seria possível escrever alguma coisa sem o “a”.

Hoje eu perdi essa vogal.

Ela me deixou, subitamente, por volta das 11h30.

Estava de bem comigo até 8h30, quando o Aguinaldo chegou aqui.

Depois, foi-se.

Tanto que apertei a tecla e nada.

Até que ainda escrevi dois textos sem ela, usando o corretor, mas, definitivamente, não dava.

Poderia escrever nos computadores da redação, mas costume é algo que nos prende.

E eu estava preso pelo “a” ou pela falta do “a”.

Nunca havia me dado conta de sua importância.

Afinal, é apenas uma entre cinco vogais que formam o alfabeto.

Peraí! Mas ela é a primeira do a, e, i, o, u.

É também a primeira do a, b, c, d…

Um artigo que define o gênero feminino, uma preposição, um numeral, um pronome de demonstração e tantas outras funções gramaticais.

Definitivamente, não daria para escrever o 7º capítulo deste “Diário de uma quarentena”.

Justo no sétimo.

Se fosse no sexto ou no oitavo, tudo bem. Eu ficaria devendo.

Mas o 7 é um número bíblico e estamos, neste momento, vivendo em meio a uma praga que muitos dirão tratar-se de evento das escrituras.

Então, vejam a seguir o que fiz.

 

A estranha compra de um notebook

14h38.

Decidi comprar um novo notebook.

Vasculhei aqueles sites de compra. Até que encontrei alguns, mas me senti inseguro em fechar negócio.

Liguei para todas as lojas do ramo que encontrei na internet. Nada!

Até que, enfim, encontrei um atendimento:

“Você tem por aí um MacBook Air?”

E do outro lado a pessoa respondeu:

“Sim, bastante peças”.

Ops!

Estava resolvido meu problema.

Uso esse tipo de computador há cinco anos. É perfeito para o que faço: escrever.

É bom! E de guerra!

Então, partimos para o fechamento da compra.

“Pagamento no cartão, entregamos em 24 horas”.

No que respondi:

“Não, meu amigo! Você não está entendendo. Tenho que escrever um capítulo da minha quarentena já já”.

“Lamento, senhor, mas a loja está fechada por causa do coronavírus”, disse-me ele.

E eu insisti:

“Nem se eu for aí receber?” E ele, no ato:

“Se o senhor vier aqui, dá pra entregar agora”.

Não perdi tempo: saquei meu álcool em gel e parti para a aventura.

Chegando lá, vi que, de fato, a loja estava fechada.

Mas vi também que o estacionamento da empresa estava repleto de carros e com um entra e sai de funcionários com maquininha de cartão.

O negócio estava acontecendo ali.

Até que chegou a minha vez.

O contato foi com duas pessoas.

Uma delas mostrou preocupação comigo, não com risco de contágio.

Falou assim, sussurrando e olhando para todos os lados:

“Entre pro seu carro. É melhor! Aqui chama muita atenção”.

Concordei, entrei para o carro, passei o cartão e esperei o meu computador, que agora já estou utilizando para finalizar esse texto.

 

Ontem foi rave, hoje é beiradão

O DJ Kleyton fez uma rave no quarto dele.

Já era dez da noite, quando ele começou a barulhar.

Eu me diverti. Botei pra agitar.

Mobilizei amigos e ajudei a impulsionar a transmissão da festa dele nas redes sociais.

Mas a música não agradou a Darci.

Ela até acompanhou por algum tempo. Mas se aborreceu e disse: essa música não presta.

Hoje, O DJ vai voltar a tocar. Vai rolar beiradão, seresta e brega. Foi um pedido que fiz pra ele.

E Darci acabou de avisar:

“Não vai tocar aquelas músicas de mosquitos”.

Está pressionado.

A festa está marcada para começar às 22h.

Se rolar alguma coisa relevante, conto pra vocês amanhã.

 

*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas

 

Leia outros capítulos

Diário de uma quarentena | Primeiro dia, 21 de março – “Meu filho”

Diário de uma quarentena | Segundo dia, 22 de março – “Meu violão, minha angústia”

Diário de uma quarentena | Terceiro dia, 23 de março – “Filosofia e fé”

Diário de uma quarentena | 4º dia, 24 de março – “Adeus, conterrâneo!”

Diário de uma quarentena | 5º dia, 25 de março – “A sinfonia voltou”

Diário de uma quarentena | 6º dia, 26 de março – “A banana e o equilíbrio”