Diário de uma quarentena | Terceiro dia, 23 de março – “Filosofia e fé”

Neuton Corrêa narra com humor fatos de seu recolhimento, acontecimentos da cidade e hoje mergulha até em temas de fé e filosofia

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*

Publicado em: 23/03/2020 às 18:42 | Atualizado em: 28/03/2020 às 11:43

Hoje é segunda-feira.

Acabei cochilando assistindo à LIVE do Governo do Estado, atualizando os números de infecção novo coronavírus.

Agora, são 32 casos confirmados.

É um alento, porque não cresceu como de sábado para domingo que saltou de 11 para 26.

Espero que isso não faça as pessoas voltarem para as ruas ou se aglomerarem na frente dos bancos, caixas eletrônicos e no comércio.

 

A Nina, o dilúvio e o resgate no motel

O quinto dia da minha quarentena começou cedo.

Ainda não era quatro horas da manhã, quando fui acordado pela Nina.

A Nina é uma cadelinha que mora com a gente desde 2012. Ela e o Tufão.

A janela da casinha dela faz frente pra janela do meu quarto.

A Nina só me chama em duas situações: quando alguém solta foguetes por perto ou quando um temporal está se formando.

Era a segunda situação.

Levantei, fui à cozinha e abri um portãozinho para que ela passasse.

Naquela hora, apenas ventava e chuviscava.

Mas, minutos depois, o tempo piorou.

À medida que o Sol tentava se despertar, as nuvens o encobriam e a água mais forte caía.

Era o dilúvio de março, anunciando que mais chuvas estão por vir, porque é assim nessa época do ano aqui na Amazônia.

A manhã chegou, enfim, com muita chuva e as emissoras de rádios e as redes sociais esquecendo um pouco do novo coronavírus para contar o estragado trazido pelo mau tempo.

Foi a maior chuva do ano.

Condomínios foram ao fundo, ruas foram inundadas, uma criança morreu e quatro casais ficaram presos em suítes de um motel e precisaram ser resgatados pelos Bombeiros, com direito a transmissão pela internet.

 

Primeiro dia na rádio sem roteiro

Há quase quatro anos eu participo do programa Manhã de Notícias da rádio Tiradentes, apresentado pelo meu amigo Ronaldo Tiradentes.

Nesse período adotei como regra, nunca falar sem roteiro.

Hoje, porém, por causa da quantidade de notícias sobre a pandemia, pedi uma licença e deixei a conversa fluir.

Deu tudo certo.

 

Visita nem a amigo doente

Tenho um amigo doente, em Manaus, que veio de Parintins. É o José Roberto Rodrigues, garçom do prefeito Bi Garcia.

O Rodrigo, como conhecemos, sofreu um grave acidente de moto em Parintins.

Veio para a capital em busca de tratamento. O problema é que chegou no auge da pandemia e já ouvi médico dizer que, se puder esperar a refrega da praga passar, é melhor esperar pra não pegar o mau.

Mas o amigo Petro Velho me convidou para visitá-lo, hoje.

Respondi taxativamente que não.

E o não é para o meu bem, para o bem do Petro Velho e para o bem do Rodrigo.

Acho melhor evitar encontros até as coisas ficarem mais claras.

E principalmente porque fiquei sabendo que no sábado, na casa onde o Rodrigo está hospedado, houve uma festa com certa circulação de pessoas.

O Rodrigo haverá de me entender.

 

A pimenta não arde mais

O que não está mais dando certo é a comida em casa.

Meu isolamento tem muita comida e pouca atividade física.

Já sinto o efeito disso na roupa e já pedi para minha esposa que pegasse mais leve.

Fiz primeiro um argumento técnico.

Disse-lhe que temos que balancear a alimentação, porque, senão, corremos o risco de escapar do coronavírus, mas aprofundar nossa obesidade.

A Darci não respondeu nada e achei que o silêncio fosse de assentimento.

Mas não: hoje, pontualmente meio-dia, lá estava ela com uma convidativa banda de tambaqui assada de forno e uma caldeirada.

As duas opções estavam boas demais. E não reclamei.

Pelo contrário, resolvi incrementar pedindo uma pimenta daquelas ardosas.

Ela trouxe, avisando: “É a última!”

Era uma murupi, então, pensei em administrar o pouco que tinha.

Amassei a ponta, só aquela pontinha, e provei o caldo.

O ardume ainda não tinha entrado no caldo.

Amassei mais um pouquinho e nem mais o cheiro senti.

Então, apertei a metade.

E agora estou com peso na consciência, porque em breve terei que sair para comprar pimenta, pois ainda não descobri quem faz entrega a domicílio desse produto.

 

Calamidade pública

São 17h20.

Estou caminhando para a conclusão deste texto e ouço que governador Wilson Lima acabar de decretar estado de calamidade pública no Amazonas.

Também anuncia medidas econômicas, criação de um fundo para enfrentar a doença e a autorização de pesquisa para uso de medicamentos no tratamento do novo coronavírus.

Rogamos para que tudo dê certo.

 

Registro da hora

Da rua, ouço: “Olha o açaí! Açaí grosso!”

 

Conversa para depois que a pandemia passar: filosofia e fé

Já ia esquecendo.

Depois da rádio, o doutor Bruno Lobato fez alguns comentários sobre temas que tratei com o Ronaldo.

Delongamos algum tempo no WhatsApp até começar a nos despedir, demostrando tristeza pela tragédia que se abate sobre o mundo.

Assim, ele disse:

“Precisamos entender o recado que Deus está dando para a humanidade, senão, ficará pior”.

No que retruquei:

“Pode nem ser Deus, porque eu acredito num Deus generoso, piedoso, caridoso e zeloso”.

E ele:

“É justo! Não dá para a colheita ser diversa da semeadura”.

E eu conclui meu pensamento:

“Meu receio é que tenha sido um recado da natureza. Impiedosa! Intransigente!”

Ele concordou. Mas fez uma ressalva:

“Verdade, mas é que, para mim, há sintonia entre uma coisa e outra. Enfim, é uma assunto complexo”.

Demos kkkkk e perguntei:

“Tem cerveja aí?”

E ele:

“Minha crença é em Deus”.

E eu sustentei o que acho, buscando argumento filosófico:

“Não é religião. É princípio. Sou agostiniano”.

Despedimos-nos com ele me desejando uma boa quarentena, e marcando uma boa prosa sobre filosofia e fé para quando o coronavírus passar.

 

*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas

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