Diário de uma quarentena | Segundo dia, 22 de março – “Meu violão, minha angústia”
Meu violão, companhia nesta auto-quarentena, é companhia na angústia do isolamento

Neuton Correa, de Neuton Corrêa*
Publicado em: 22/03/2020 às 17:37 | Atualizado em: 28/03/2020 às 11:43
Hoje é domingo.
Começo a redigir minhas anotações agora: são 15h36.
O governo já atualizou os números do novo coronavírus no Amazonas.
Dos sete casos que escrevi ontem, os confirmados agora já chegam a 26.
O governo também informou que não vai mais contar os casos notificados como suspeitos, nem os descartados nem os em investigação, porque já há contaminação comunitária.
Um desses 26 casos veio de Parintins, minha terra natal.
De lá, há questão de minutos veio a última ligação telefônica que recebi em Manaus.
Era o meu irmão Fernando.
Ele queria discutir comigo uma forma de como continuarmos mantendo nossos pais e alguns parentes na cabeceira do Miriti.
Viajar de barco já está arriscado, observou.
Então, levantamos várias hipóteses de continuar mantendo nossos pais afastados da cidade.
E não descartamos a possibilidade de voltar a fazermos como fazíamos quando éramos crianças: viajar de canoa ou rabeta.
Voltarei a conversar com ele sobre isso.
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Diário de uma quarentena | Primeiro dia, 21 de março – “Meu filho”
Domingo sem Ponta Negra e sem pedalada
Hoje não pude ir à Ponta Negra. O parque está fechado.
Imagino a tristeza que se abateu sobre aqueles que vão todos os domingos ali para correr, caminhar, pedalar ou fazer alguma atividade física.
Vou ali vez ou outra, mas eu estava me preparando para ir lá hoje.
Deixa o coronavírus passar.
Pensei em sair pedalando aqui mesmo perto de casa, mas não me senti encorajado.
Coragem para isso vim a ter mais tarde, quando ouvi numa emissora de rádio um especialista dizer que sair para correr ou pedalar pode, desde que sem contato com outras pessoas.
Domingo sem cerveja
Sem poder pedalar, por volta das 10h, fui para um terreno do BNC Amazonas, na avenida das Torres.
Fui com o Rhaygner, filho do Guido que está morando em casa.
Fomos cuidar da Negona e do Rassan, dois cachorros que mantemos ali. E lá aproveitei para cuidar de uns pés de bananeira.
Saí de lá com sede e fui direto para uma loja de conveniência.
Estava disposto a levar alguma reserva de cerveja pra minha quarentena.
Desisti quando entrei na loja.
E só entrei porque eu era o único cliente no momento.
Mas, quando pedi uma sacola para pegar o produto, desisti.
As sacolas estavam dispostas no balcão.
Na hora, imaginei a quantidade de pessoas que por ali passaram, falaram e certamente deixaram uma gotícula de saliva.
Terei que arranjar outra forma de comprar esse produto. Se não encontrar, paciência.
Domingo sem losartana
Sem consegui a cerveja, fui, então, a uma drogaria perto de casa.
Tenho losartana para mais duas semanas, mas geralmente meu estoque é mensal. É o remédio indicado para controlar minha hipertensão.
Porém, ao me aproximar da loja notei que havia uma fila razoável e quase todo mundo sem máscara, um perto do outro.
Então, vou usar o serviço de entrega domiciliar.
Preocupação com o DJ
Continuo preocupado com as saídas do Kleyton.
O Kleyton é irmão da Darci e mora com a gente.
Ele está mais do que ciente do grau de contaminação do novo coronavírus.
O DJ jurou que só iria à casa da mãe dele, Edione, que mora em Manaus, no Zumbi, e que iria tomar os cuidados devidos.
Espero que sim.
Produção doméstica
Por falar na Darci, ela está ocupando o tempo dela numa oficina que montou no fundo do quintal de casa.
Está produzindo sabão líquido, sabão em barra, desinfetante e sabonete.
Ela passa o tempo a olhar a internet e preparar as fórmulas, que ela já faz há algum tempo.
Por causa disso, não teremos que nos preocupar com esses itens e o asseio da casa.
Gotículas do pavor
Ontem, um amigo me ofereceu um açaí de Carauari. Aceitei. Ele mandou um emissário entregá-lo.
De volta, mandei uma penca de banana que colhi do terreno do BNC Amazonas.
O problema foi no encontro para esse escambo.
O intermediário desembarcou do carro, estendendo a mão para mim.
E quando ele falou alguma coisa a mais na minha direção, vi gotículas de saliva refletidas à luz do Sol, vindo na minha direção.
Peguei o açaí, entreguei a banana e entrei em casa.
Corri para a pia, mergulhei as sacolas em água com sal e água sanitária e sabão e fui para o banheiro tomar banho, um bom banho.
Ah! O açaí de Carauari é uma delícia.
Rotina
Neste meu quarto dia de confinamento, segundo deste diário, tenho mantido como regularidade escrever para o BNC Amazonas e a conversar com a turma do Cacique News.
O Cacique News é um grupo de WhatsApp e está servindo para me distrair.
A turma posta muitas notícias, mas posta também muitas bobagens só pra puxar conversas, que acabam se delongando por horas a fio.
Virou uma boa diversão on-line.
Meu violão, minha angústia
Agora, vou confessar uma coisa pra vocês. Se houve um momento de angústia nessa minha quarentena, até aqui, devo dizer que isso aconteceu ontem à noite.
É que tentei reunir virtualmente meus amigos, artistas, mas não consegui.
Tenho dois violões, um nunca me atrevi a tocar, porque é de doze cordas, e outro de que tanto gosto pelo lírico som que produz.
É um Raul Lage, número 495. Foi feito pra mim, que nem sei afiná-lo.
Mas, ganhei de um amigo, que morreu logo depois de fabricá-lo.
E foi nesse momento que olhei para o RL 495.
Estava deitado ao meu lado, com as cordas para cima. Parecia me convidar a tocá-lo.
E toquei!
Estava afinado. Sim, estava! Tenho certeza!
Deu pra tocar, portanto, “Pra não dizer que não falei das flores”, do Geraldo Vandré. A que começa assim: “Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não…”. Essa música dá pra tocar com duas notas.
Contudo, minha festa acabou aí. Isso porque foi apenas essa música que aprendi a tocar quando tentei aprender violão.
Poderia ter aprendido mais. Se tivesse aprendido mais, ainda que trinta anos tivessem se passado, a noite passada poderia ter sido de festa aqui na minha quarentena.
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*O autor é jornalista e diretor-presidente do BNC Amazonas
Foto: Do autor