Brasil na encruzilhada: não há salvação fora da política – III

Brasil

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 12/08/2018 às 09:58 | Atualizado em: 12/08/2018 às 09:58

Por José Alcimar de Oliveira*

 

01. Permito-me fazer uma exegese heterodoxa do célebre axioma extra Ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação), no tratado De Catholicae Ecclesiae Unitate, de São Cipriano, pensador cristão do século III, em contraposição à interpretação e, bem mais, aplicação teológico-política, que se tornou hegemônica no Regime de Cristandade Medieval, que desidratou o conteúdo comunal do conceito grego de Ekklesía (assembleia do povo, assembleia convocada). Sem intenção nenhuma de ciprianizar o rebaixado nível da política oficial, o que aqui me interessa é trazer ao debate o descompasso (funcional ao sistema de poder) entre política e assembleia – do povo, porque as parlamentares tendem cada vez mais a se encouraçarem em torno de si mesmas. Se pela cronologia o Brasil não tem raízes medievais, a política oficial encarregou-se de recuperar essas raízes ao encastelar o poder nas mãos de poucos e dele se utilizar para solapar direitos coletivos. Já o Regime de Cristandade Medieval esvaziou o sentido utópico do Reino de Deus e o identificou com as fronteiras geográficas da Igreja do medievo cristão. Funcionalizou ao limite o axioma Cipriano.

 

02. Assim como Marx nunca delineou um modelo de Estado Socialista, Cristo também não fundou nenhuma Igreja Oficial. Um e outro, de forma distinta, mas não inteiramente contraditória, apontaram princípios. Resguardada a diferença de método, é inegável uma linha de continuidade dialética entre o comunismo primitivo das primeiras comunidades cristãs e os princípios comunais da tradição marxiana. Sob perspectiva teológica, a ekklesía (igreja) não é fim, mas instrumento, mediação a serviço de uma construção utópica (projeto) a que Jesus definiu pelo nome de Reino. Sob perspectiva filosófico-política, a ekklesía (assembleia do povo) não pode ser instrumentalizada pelos interesses da assembleia parlamentar. Esta emana daquela e ambas deverão ter sua teleologia na edificação de uma sociedade de livres e iguais em direitos e deveres. A assembleia parlamentar construiu uma ekklesía sem povo e contra o povo. Trama contra o povo e se mantém pelos mecanismos ideológicos e mediáticos da falsificação representativa. A esse modelo a um só tempo corrompido e corruptor importa modelar os representados como povo-massa e impedi-lo de se reconhecer como povo-classe.

 

03. Assim funciona o parlamento, o parlamento e os demais poderes, nos limites da democracia burguesa. Sem nenhum ou muito débil controle social, esse arremedo de democracia controla o povo e é controlado pelo capital sem controle. Para quem governa o executivo do Estado Burguês? A quem serve o judiciário do Estado Burguês.? Para quem legisla o parlamento do Estado Burguês? Há bem mais de um século e meio, no Manifesto Comunista, de 1848, Marx e Engels denunciavam o domínio político da grande indústria e do mercado mundial sobre o moderno Estado parlamentar, e assinalava que o poder “executivo do Estado moderno não é mais do que um comitê para administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa”. Quando a política parlamentar se enfeudaliza nos gabinetes assepsiados – mas dominados pelo inegável mau cheiro do fisiologismo institucional – e foge do corpo a corpo com as praças, inevitavelmente aumenta o coeficiente de trapaça. Se as praças fossem ocupadas pelo povo, dificilmente a Corte Suprema – guardiã de nossa afrontada Constituição Federativa – conceder-se-ia de forma tão generosa e célere um aumento salarial de 16,38% num País em que a violência da desigualdade social, matriz das mais diversas formas de violência, nos transforma numa Brindópia tropical, a combinar a miséria da Índia com a violência da Etiópia. Os três, sob o tacão do grande capital.

 

04. A política, como nenhuma outra instância da vida animal humana, é o espaço-tempo da construção do indivíduo social. O social que nos designa como uma síntese de múltiplas determinações é associado, conforme a construção aristotélica, à Pólis. O que é ou deveria ser a cidade considerada em seu dever-ser? O que Aristóteles nos apresenta em sua obra A política não é senão uma teoria da cidade. Animal político que é, o homem se associa tendo por fim uma vida racionalmente feliz. Associa-se para bem viver. O próprio Aristóteles o afirma, ao comparar o estatuto de vida comunitária das formigas e das abelhas com o estatuto comunal dos mamíferos humanos. Segundo o grande estagirita, não é grande coisa os homens se reunirem para viver em comunidade, porque tanto as formigas quanto as abelhas também o fazem. A diferença essencial é que os homens se organizam em comunidade, na Pólis, a comunidade das comunidades, sob a teleologia da vida feliz. O Brasil é um País urbano, mas politicamente sub-urbanizado e sob elevado coeficiente de vida infeliz. Cidades refratárias aos direitos de cidadania. Mas em que se importa a política oficial com a vida infeliz que ela própria imprime na vida do povo?

 

05. A propósito dessa incúria oficial e criminosa, ao referir-se ao drama de nossa política educacional, o grande Durmeval Trigueiro Mendes observava que, “a despeito da retórica, o Estado (brasileiro) não quer, nem nunca quis, resolver o problema educacional brasileiro (…). Por força dessa opção lesa-pátria, nossas elites, joviais e subpositivistas, logo vislumbraram a solução mágica e tecnocrática: Universalizar, conforme constatava Durmeval Trigueiro, o dispositivo da “meia-educação”: “Se o ‘desengrossamento’ do povo, até a limpidez, é tão dispendioso, e ‘incerto’, por que não admitirmos a meia-educação? Nesse caso, realizar-se-ia uma educação apenas ritualística-simbólica, atendendo aos anseios da massa e sem que as suas deficiências impedissem o desenvolvimento…”. Enquanto o povo, permanentemente incomodado pelo poder nunca incomodado e exercido pelas altas esferas do mando oficial, não fizer a travessia da condição de povo-massa para povo-classe, tudo seguirá conforme a dinâmica do transformismo ou da transformação capitaneada pelas forças do atraso que se desdobram, sobremodo em tempos de eleição, para que nada saia do lugar. Mais do mesmo sob máscaras de renovação.

 

06. A esfera política sempre se degrada quando submetida à lógica do salvador, venha da esquerda, do centro ou da direita. Afirmar que não há salvação fora da política implica igualmente afirmar que não se pode salvar a política pelo recurso ao salvacionismo. O salvacionismo é a negação da política. E a bem da justiça, para resguardar de salvacionismo a figura messiânica do Jesus Histórico e do Cristo da Fé, seu martírio é a prova cabal de sua opção a favor do povo e contra a opressão de fundo político (romano) e religioso (farisaísmo judaico dos ditos doutores da Lei). A mais breve leitura da vida de Jesus demonstra sua identificação com o povo, onde o povo estivesse. Foi mais o Profeta das ruas e da periferia do que o Sacerdote imobilizado pelos rituais da sinagoga. Sem nenhuma pretensão de proselitismo confessional, apenas um exercício de natureza didática e política, não seria demais sugerir aos candidatos nessas eleições a leitura do Evangelho de Marcos, o mais curto, em que do início ao fim Jesus está sempre cercado pela multidão. Quando o horizonte da política é definido pelo fortalecimento do povo-classe, diminui o espaço propício à geração de propostas messiânicas e funcionais à manutenção do povo-massa. O povo-classe é um sujeito histórico ativo que se reconhece como classe. O povo-massa é um objeto sem consciência histórica de sua vocação ontológica, cuja natureza, para recorrer ao educador Paulo Freire, é gentificar-se, tornar-se gente, desreificar-se.

 

07. A saída para o Brasil está no Brasil, talvez não no Brasil de Brasília, mas no Brasil da classe que vive do trabalho, inclusive em Brasília. Tanto quanto outros países, o Brasil dispõe das duas fontes de toda riqueza, a Terra (o ser natural) e o Homem (o ser social, a classe trabalhadora), sobre as quais, na afirmação de Marx, recai o poder destrutivo do Sistema do Capital. Mas a história não é destino, é campo aberto, espaço inventivo e artesanato dialético da criação humana. O Brasil tem jeito sim, não do jeito parasitário (por meio dos jeitinhos) a que vastos setores das elites recorrem para se dar bem à custa do erário, do trabalho, do suor e da miséria da classe trabalhadora. O jeito do Brasil ter jeito é pela democratização dos meios orientados pela teleologia (finalidade) de um projeto coletivo de vida em que o direito a viver com decência e o respeito ao ser natural, animal e social se converta em forma de vida comum. Cabe por fim perguntar: que lugar a agenda política e da política eleitoral desse 2018 reserva a esse projeto?

 

*O autor é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, 12 de agosto de 2018.

 

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