Brasil na encruzilhada: não há salvação fora da política – II

Aguinaldo Rodrigues
Publicado em: 04/08/2018 às 21:50 | Atualizado em: 04/08/2018 às 21:50
Por José Alcimar de Oliveira*
01. Não há outra forma honesta e estrutural de se combater as desigualdades sociais senão por meio das mediações intelectuais e materiais de que pode se instrumentalizar a política. Mas no Brasil, nessa República de poucos, República que insiste em se manter sem cidadãos, e a considerar os fundamentos ontológico-sociais do dever-ser da política republicana, o que se verifica é que a política realmente existente se apartou das necessidades sociais do povo e os políticos, não poucos, reduziram a instância da representação política aos limites privatistas da manutenção e ampliação de interesses fisiológicos. O Congresso funciona como extensão dos negócios e negociatas da Casa Grande Senhorial da tirania financeira. A política do eleito é submeter a política ao sempre renovado fisiologismo da política de baixa extração, desidratada dos interesses coletivos e da promoção dos direitos fundamentais de cidadania. A agenda efetiva consiste em naturalizar carências, e quando estas se agudizam, enfrentá-las emergencialmente. O Brasil não faz parte do grupo dos emergentes? O que significa emergir sem os fundamentos de um legado institucional? Como tratar sob perspectiva emergencial problemas estruturais? Que outro espaço civilizatório, senão o da política, pode ensejar as mediações para o enfrentamento honesto da crise estrutural que desintegra a República?
02. Nesse circo emergencial, de espetáculo de profundo mau gosto e de estética rasa, a tão aclamada regularidade da cronologia eleitoral, subdefinida como “festa da democracia” serve apenas para repetir e aprofundar o círculo vicioso da miséria política que domina a combalida institucionalidade da República proclamada e programada para funcionar em densidade sub-republicana. Sob o tempo curto de interesses menores a agenda política do País oficial consiste em planejar para regredir. É o futuro protagonizado pelo passado que nunca passa e ocupa e limita os horizontes do presente. Os partidos, e rarefeitas são as exceções, são parte interessada e promotora dessa anomalia cívica. A isso, e de forma cirúrgica, Milton Santos definia pelo subestatuto de “País de deficientes cívicos”. Ainda segundo Milton Santos, um País em que o aumento do número de letrados – eu diria subletrados – implica a diminuição do número de intelectuais. Terreno fértil para o cultivo da mediocridade e geração exponencial do semiculto, aquele que segundo Adorno vive do cultivo de si mesmo sem si mesmo. Segue, por consequência, a construção do Estado de Democracia Regressiva.
03. As promessas estruturais da política permanecem voluntária e irremediavelmente travadas pelo voluntarismo das soluções emergenciais. Afinal, é mais fácil mudar e multiplicar leis do que promover as transformações requeridas pelos dilaceramentos sociais. Ensina a máxima antiga que verba non mutant substantiam rei (as palavras não mudam a substância das coisas). Em República de natureza verbosa, como a brasileira, de discursos derramados, de compulsão legiferante, multiplicam-se atores políticos de alta eficiência retórica e com soluções na ponta da língua. O princípio dialético do dissenso e da necessária contradição, sem o qual a política se converte em conchavo e acertos de compadrio, encontra precário abrigo parlamentar nas instâncias legislativas.
No reino da pós-dialética o real e suas incontornáveis contradições ontológicas e sociais cedem lugar ao espetáculo da pós-verdade. Sub-representado e objeto de manobra das artimanhas demagógicas, o povo permanece alijado e submetido ao mutismo e à impotência de sua revolta. Mas ninguém por muito tempo pode conter as contradições reais. Bem o diz a sábia sentença: com o tempo, a verdade aparece. Veritatem aperit dies.
04. A democracia dita parlamentar chegou ao limite. Abdicou, inclusive com a conivência dos que fazem oposição (uma oposição funcional ao sistema e presidida pelo inconformismo discursivo e comodismo prático), dos dois princípios que moviam a limitada democracia ateniense: a isonomia e a isegoria. República sem isonomia, porque a maioria do povo continua desigual perante a lei. República carente de isegoria, porque só uma restrita minoria tem direito ao uso político da palavra. Mesmo o conceito de povo – porque falar em classe já seria incidir demais no campo da projeção ideológica –, depois de 128 anos de República, ainda permanece um conceito destituído de concretude ontológico-social. Conceito vazio e manipulado pelos interesses da plutocracia. Não há direito à justiça sem direito ao pão e às letras. Aliás, seguindo Brecht, “a justiça é o pão do povo”. Justiça, penso eu, implica relação de simbiose entre intestino e encéfalo. A miséria desencefaliza e é sempre útil à nanopolítica.
05. Nessa República que já se instituiu anômala, falta Brasil e sobra Brasília. Brasília, Capital em que se concentra o poder controlado pelo capital sem controle, mantém-se apartada do Brasil real, Brasil de quem vive para sobreviver. Nosso Mestre Literário maior, Guimarães Rosa, a propósito desse descompasso entre a retórica demagógica e o real em busca de reconhecimento objetivo, assim se pronunciava: “uma coisa é pôr ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias”. Como destravar a política? Por que o Brasil, seguramente maior do que Brasília, parece nunca caber em Brasília? O de que carecemos? Mediações, mediações, mediações. Ao final de sua vida, em 22 de março de 1832, as últimas palavras de Goethe – segundo Napoleão, o maior poeta vivo – aos amigos que circundavam seu leito foram um apelo ao conhecimento, ao pedir que lhe abrissem as janelas, “para que entrasse mais luz”. Luz, luz, luz. Oseias 4,6 denuncia que seu povo perece for falta de conhecimento.
06. Se não há salvação fora da política, menos ainda na política que habita o Brasil Oficial de Brasília. Não é gratuita a crescente rejeição que o povo manifesta acerca da política. Como sair dessa aporia, se a política de salvação da política não poderá nascer senão da política? O intelectual percebe a política como dever-ser abstraído das contradições reais. Para a percepção social do povo a verdade da política está colada à política como ela é, funciona e se manifesta no cotidiano. Sua percepção depende menos da natureza formal da política (ortodoxia) do que de sua materialidade efetiva (ortopraxia). Os discursos, bem ou mal, podem se equivaler, sobretudo quando não submetidos à unidade dialética entre forma e conteúdo, entre a intenção (viciada ou correta) e a materialização (ausente ou efetiva). A política não salvará a política enquanto se mantiver apartada da justiça.
07. Vale sempre trazer à luz a sábia observação de Brecht, tão atual para a oficialidade política do Brasil do século XXI: “É possível que em nosso país nem tudo ande como deveria andar. Mas ninguém pode negar que a propaganda é boa. Mesmo os famintos devem admitir que o Ministro da Alimentação fala bem”. Bem mais que ao tempo do Mestre do Teatro Pedagógico, Épico e Crítico, a política como ela é no Brasil segue as ordens da ideologia publicitária, sem a qual não vicejariam a tragédia, a farsa e o escárnio sob o poder maior do financismo. A degradação da política na consciência e na vida do povo não resulta de uma compreensão incorreta de seu dever-ser, antes se configura como um corolário das práticas abastardadas, delinquentes, autoritárias e viciadas pela arrogância financeira da baixa política promovida por expressivos setores das classes dominantes.
*O autor é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas e filho dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, 05 de agosto de 2018.
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Foto: @Reuters/A. Machado_reprodução site www.dw.com