Filosofia sob ameaça de despejo: o regime da misosofia e o poder do subpositivismo pseudoilustrado

Neuton Correa
Publicado em: 27/04/2018 às 07:46 | Atualizado em: 08/05/2018 às 12:52
Por José Alcimar de Oliveira*
01.Segundo Galileu Galileu, a verdade é filha do tempo, não da autoridade (veritas est filia temporis, non auctoritatis). Para Agnes Heller, a história é a substância da sociedade. Não há sociedade sem história. Não há história que não seja social. Quando estudante do antigo ginasial, nos inícios da década de 1970, no Ginásio Estadual Presidente Castello Branco, no bairro de São Jorge, li e memorizei uma afirmação, penso que de Antônio Borges Hermida, que costumava repetir como crença até aportar no curso de Teologia e Filosofia no antigo CENESCH, que funcionava na rua Joaquim Nabuco, em Manaus: todo fato histórico e um fato social, mas nem todo fato social é um fato histórico. No regime da crença, o sujeito é, de certo modo, possuído pelo fundamento daquilo em que crer. Além do mais, repetia aquela afirmação do Hermida mais seduzido pela redondeza lógica do juízo do que propriamente pelo seu conteúdo epistemológico, que até então se me parecia indiscutível. Foi então que pela porta da Fiosofia, lá no saudoso CENESCH, me caiu nas mãos um pequeno livro de Lucien Goldmann, filósofo e sociólogo francês, mas romeno e judeu de origem, cuja leitura imprimiu uma fratura dialética no argumento do velho Hermida, que até então julgava impermeável à dúvida. Segundo Goldmann, todo fato histórico é um fato social e inversamente.
02. Fiz o percurso da crença à ciência, mas com o cuidado epistêmico de não conferir ao conhecimento científico a pretensão positivista de atribuir a essa forma, hoje dominante, de objetivação do real o monopólio da verdade. A verdade científica não é a verdade, é uma verdade. Ao operar pelo caminho inverso ao da crença, no qual o objeto se apossa do sujeito, no regime da ciência imaginamos enquadrar o mundo nas malhas da rede epistêmica da consciência cognitiva. A propósito dessa equação, Chesterton distinguia o poeta do cientista. O primeiro dissolve a cabeça no mundo, enquanto este último pensa reduzir o mundo à própria cabeça. Desde Francis Bacon, Galileu e Descartes a Ciência seguiu um percurso predominantemente instrumental. Ortega y Gasset, na primeira metade do século XX, sintetizou esse processo ao afirmar que a técnica contemporânea não é senão o resultado da cópula perfeita entre ciência experimental e capitalismo. A produção capitalista promoveu a apartação entre ciência e ética, entre ciência e sabedoria, entre ciência e filosofia.
03. Nosso plano, da razão histórica, cujo devir implica a passagem dialética do ser inorgânico ao orgânico e desse ao ser social, é o de uma contingência que se nos impõe pela força do necessário. O que é o ser social senão um hiato entre o ser inorgânico que nos antecedeu e nos sucederá. Somos pó, como nos diz o Livro do Gênesis (3,19): memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris (lembra-te, homem, que és pó e ao pó voltarás). Mesmo o criacionismo não pode negar a precedência do ser inorgânico sobre o ser social. Marx, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, assinala que a natureza é o nosso corpo inorgânico. Esse é imune à morte. Não há morte fora da esfera do ser social, único capaz de conferir sentido ou falta dele a esse fenômeno incontornável de nossa existência. Do devir de nossa condição humana, de ser social, deriva a consciência ontológica de que o homem – segundo Heidegger – é um ser-para-a-morte.
04. A Filosofia nos ensina que experiência da verdade é necessariamente filha do tempo e do espaço, da História e da Geografia. É verdade que Marx não tinha muito apreço pela Geografia, tal como a conheceu no século XIX. Dava primazia ao tempo sobre o espaço e à História sobre a Geografia. O tempo se lhe constituía como espaço do desenvolvimento humano. Dentre outras tarefas, não seria de todo uma exorbitância epistêmica, atribuir à Filosofia, desde que sob as balizas do materialismo dialético e histórico, a tarefa de promover um regime de cooperação entre História e Geografia. David Harvey, geógrafo britânico e marxista, é um fecundo exemplo dessa tentativa dialética. O caminho da verdade exige o paciente e reflexivo exercício das mediações teórico-práticas. Não há filosofia possível fora desse devir. Não há, de igual modo, experiência ontológica desse devir que possa prescindir do conhecimento filosófico.
05. Não há caminho fácil para a Filosofia. A Filosofia já nasceu sob fogo cerrado, não o de corte heráclitico. Se ao tempo da pólis socrática a Filosofia já encontrava precário abrigo na Cidade Estado de Atenas, no Brasil atual desses tempos regressivos, refratários à reflexão – de forte aversão à teoria, conforme Adorno –, e presididos pelo caráter misológico (na verdade, misosófico) do subpositivismo pseudoilustrado dos joviais agentes da racionalidade instrumental, é preciso dizer que a Filosofia está sob ameaça de despejo não apenas dos espaços citadinos, mas da própria Universidade. Se balão de ensaio ou não, ganha corpo e adesão dentro e fora dos muros acadêmicos a tese insana de que é um luxo as Universidades Federais manter cursos como os de Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Artes. Que Universidade é essa que mata suas raízes. Ouso dizer que é a Universidade submetida ao que no final da década de 1970 o insuperável e generoso anarquista e cientista social, Maurício Tragtenberg, denominava de “delinquência acadêmica”, do poder sem saber e do saber sem poder. Uma Universidade sem Filosofia é uma aberração lógica e ontológica. Equivaleria, dentre outras possíveis equivalências deletérias à razão, a suprimir a contribuição de Kant e, por consequência, a de Hegel e de Marx, para o entendimento do processo do conhecimento.
06. Dentre outras razões alegadas por esse estranho regime cognitivo da pós-verdade, jovial e inculto, para suprimir a Filosofia do processo educativo formal, uma seria a de dificultar a aprendizagem da matemática, da física e da língua portuguesa no âmbito do ensino fundamental e médio. Crítico que sempre fui da razão instrumental cartesiana e de seus desdobramentos, tenho agora que admitir que para combater a regressividade cognitiva dessa proposta serei obrigado a fazer as pazes com Descartes, porque pensar a Matemática sem a Filosofia é retroceder aos tempos que o Filósofo do Método julgava superados. Sociólogo da UFAM e sábio cultor da dúvida metódica, o professor Marcelo Seráfico reforçou de forma pedagógica minha atitude inflexiva rumo ao Cartesius: “(…) o retrocesso é tamanho que precisamos defender o Descartes para avançar”.
07. Nesse mesmo itinerário crítico e dialético, a professora Marilene Correa, cujo rigor do pensamento sociológico sobre a Amazônia se articula em permanente diálogo crítico e fecundo com a Filosofia e a Epistemologia, igualmente reforçou em mim a necessidade do giro cartesiano ao lembrar que não se chega à inteligência científica sem as mediações forjadas pela tradição filosófica. História não é destino, é campo aberto e jogo de forças. Diante da ameaça em curso e tramada nos porões da racionalidade instrumental do poder sem saber, cabe aos intelectuais coletivos da Filosofia, da Sociologia, da História, da Geografia, das Artes, associados aos que não abdicaram do pensamento crítico, organizar a resistência epistêmica e multiplicar as iniciativas políticas para impedir que as zonas de sombra e obscurantismo avassalem o que resta de Universidade Pública, Autônoma, Democrática e Socialmente Referenciada. Em suas Minima moralia: reflexões sobre a vida danificada Theodor Adorno insistia na tese de que hoje o que se exige do intelectual é que de forma permanente esteja nas coisas e fora delas.
*O autor é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, é base da ADUA–S. Sind., filho dos rios Solimões e Jaguaribe e devoto do Padim Ciço. Em Manaus, AM, 26 de abril de 2018.
Ilustração: Reprodução/site Anthropos