A emoção de ser galera do Garantido
Em Parintins, a emoção e o esforço da galera do Garantido marcam o início do Festival com solidariedade, disputa por espaço e amor ao boi.

Juliana Oliveira, da redação do BNC AMAZONAS
Publicado em: 18/06/2025 às 17:26 | Atualizado em: 18/06/2025 às 17:27
O ditado popular “os últimos serão os primeiros” ilustra bem o caso das galeras do Garantido e Caprichoso no Festival Folclórico de Parintins 2025. Aqueles torcedores que chegavam em primeiro lugar nas filas das galeras nos últimos anos perderam seu posto para outros torcedores, que agora se tornaram os primeiros.
Anica de Menezes (18 anos) e Eduarda Xavier (17 anos) chegaram ontem (terça-feira, 17 de junho), às 10h da manhã na fila da galera do Garantido: dez dias para o início do Festival.
A fila da galera do Garantido se formou antes da galera do Caprichoso, que também chegou terças no final da tarde.
Nascidas e criadas na Baixa da Xanda em Parintins, todos os anos, Anica e Eduarda tentavam chegar em primeiro lugar. Ano passado, elas ficaram em segundo lugar. Este ano, elas quiseram vir mais cedo para serem as primeiras. Finalmente, conseguiram.
Uma rede de solidariedade
Uma rede de solidariedade é construída em torno da galera do Garantido, com o intuito de colaborar com aqueles que estão enfrentando a fila dias antes do início do Festival. O grupo de Anica e Eduarda é composto por 60 amigos que se revezam na fila em turnos de 4 horas. Os amigos da Baixa encaram as filas do Festival há anos.
A constituição das filas muda a cada ano. Alguns amigos foram embora da cidade, e novos amigos passaram a fazer parte, substituindo aqueles que se foram. Anica e Eduarda contam que “tem gente que oferece ajuda”, como barraca, água e comida. Essa rede se estende para além de Parintins.
“Nossos amigos que estão em Manaus, outros Estados, ainda não chegaram. A gente arranja outras pessoas para ficar no lugar deles. Mas quando eles vierem, eles vão pegar novos turnos com o pessoal que está aqui.” – Eduarda Xavier
“Tem vários amigos que não são daqui da cidade e nos ajudam com mantimentos, como comida, água, dinheiro para comprar as coisas. Tem amigos de Curitiba, São Paulo, Goiânia etc. Eles todos vêm.” – Anica de Menezes
Do lado da galera do Garantido não há estabelecimentos, apenas casas residenciais. Por isso, a cada 4 horas, quando o turno acaba, e os amigos se revezam, Anica e Eduarda têm a oportunidade de ir ao banheiro. Os turnos são distribuídos a partir da disponibilidade de tempo de cada um dos amigos. Cada pessoa se voluntaria para um horário específico.
Estar em primeiro lugar na fila é possível porque, em Parintins, escolas e universidades entram em recesso oficial uma semana antes do Festival Folclórico. Esses locais são usados para hospedar funcionários (marinheiros, policiais etc.) que vêm de Manaus para trabalhar durante o Festival.
Ter a primazia na fila atrai os olhares da imprensa e dos itens oficiais do boi Garantido. Anica, Eduarda e seu grupo de amigos deram entrevistas para jornais, e estão sendo visitadas pelos itens oficiais do boi. Ontem, 17 de junho, Anica e Eduarda receberam a visita do tripa do boi: Batista Silva. A noite é o momento mais movimentado do acampamento. A galera escuta músicas, dança, e recebe visitas. Conforme Eduarda, “a gente não fica parado”.
Ser item do boi
Por qual motivo as pessoas se esforçam tanto para serem as primeiras a chegar? Ser pioneiro na fila da galera traz seus desafios. E entrar primeiro não significa apenas ter uma boa visão do espetáculo. As galeras dos bois-bumbás não são meros espectadores, eles são “itens oficiais”, ou seja, a participação das galeras pontua na disputa entre os dois bois-bumbás.
Quem disputa os primeiros lugares na fila chega ali literalmente para fazer acontecer. Como Eduarda disse: “Nós somos itens, e a gente não vai para assistir, a gente vai para contar ponto”. “Não adianta ir gente parada lá para cima e ficar parado, galera é um item que vale ponto, e assim como a gente pode ganhar um ponto alto, a gente pode ganhar um ponto baixo”, completou Anica. Além de concorrer ao Festival como item, as galeras concorrem a um troféu à parte: o de melhor galera.
A disputa em torno dos primeiros lugares inclui colaborar para a vitória do seu boi. Sentir que faz parte de algo maior que sua própria individualidade. Nesse sentido, a galera se aproxima muito mais de uma torcida de futebol do que dos espectadores da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. Aliás, os parintinenses detestam que o Festival Folclórico seja comparado às escolas de samba. Ser galera é ser item. E ser item é ser um corpo coletivo que, neste caso, tem as cores vermelho e branco.
Disputas e conflitos
O primeiro lugar da fila da galera, um lugar tão cobiçado, atrai olhares e fofocas:
“Muita gente acusa a gente de vender lugar, de furar fila, mas nós não vamos vender lugar. Combinamos com os outros grupos que não vamos vender para não ficarmos para trás. Porque não é justo a gente ficar aqui vários dias e aí vem gente vender lugar. A gente fica meio para trás, fica apertado na hora.” – Eduarda Xavier
“Todo ano a gente sempre ficava em segundo lugar e o pessoal em primeiro lugar vendia lugar. A gente ficava muito para trás e demorava muito. Quando a gente via estava muito apertado, gente que a gente nunca viu na nossa vida, a gente não via na fila. Era muito chato. Por isso, esse ano a gente determinou que queríamos chegar em primeiro lugar. A gente conseguiu.” – Anica de Menezes
Os primeiros a chegar na fila da galera do Garantido nos últimos anos estão agora em terceiro lugar, pois chegaram 7 horas depois do grupo de Anica e Eduarda. A fila da galera do Garantido já está dobrando a calçada daquela rua.
Desafios e expectativas
“Cansaço”, “perrengue”, dias pegando sol e chuva, noites acordados. A galera do Garantido destaca esses como os principais desafios de “ser item” do boi branco. Contudo, a galera “leva tudo na brincadeira”. Brincadeira consiste em enfrentar as adversidades com leveza, pois elas são parte do próprio ritual que é o Festival Folclórico. Aliás, todo ritual tem um quê de sofrimento.
Um dos desafios de ser item (galera) é justamente manter sua primazia. Manter o primeiro lugar na fila nas noites seguintes do Festival. O portão abre às 15:00, a galera sobe para a arquibancada geral para se apresentar no espetáculo. Em seguida, a galera se organiza para retomar o primeiro lugar para o próximo dia, dividindo-se e alternando-se.

O que não pode é o lugar na fila ficar totalmente desocupado ou abandonado. A galera é territorialista. E é isso o que garante a sua apresentação no espetáculo do boi-bumbá. Entretanto, todo esse esforço vale a pena, pois a galera do Garantido se sente privilegiada, e sabe que “tanta gente quer estar aqui”. Afinal, é uma “emoção muito grande ser da galera do Garantido”.
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As expectativas da galera para o Garantido este ano são as mais otimistas possíveis. Agora o Garantido tem um “presidente que realmente faz as coisas”, o Fred Goés, e “estamos felizes que o Garantido cada ano está se erguendo mais, para voltar para o que ele merece”.
Fotos: Juliana Oliveira, Especial para o BNC Amazonas