Caprichoso e Garantido, os namoradinhos do Amazonas

'O amor declarado nas toadas de boi-bumbá de Parintins é coletivo sobre dois: Garantido e Caprichoso'. É o que mostra a antropóloga Dassuem Nogueira

Caprichoso e Garantido, os namoradinhos do Amazonas

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 12/06/2025 às 11:16 | Atualizado em: 12/06/2025 às 11:17

Embora uma prova de amor dada por Pai Francisco a Mãe Catirina seja o início da trama do auto do boi, é difícil encontrar toadas que falem de amor romântico entre duas pessoas.

O amor declarado nas toadas de boi-bumbá de Parintins é coletivo sobre dois: Garantido e Caprichoso.

Talvez por isso, o gênero não tenha alcançado um público maior, pois é preciso ter visto algo de arena para compreender o que uma letra quer transmitir.

Embora existam toadas de poética universal que não exigem essa experiência.

Há algumas toadas românticas de grande sucesso, como “O amor está no ar” (Chico da Silva e Marcos Santos).

Mas, não é comum que contem histórias como o amor entre contrários, como em “Toada de amor” (Chico da Silva).

Neste ano, há duas toadas que fazem um movimento interessante de personificar o amor romântico em Garantido e Caprichoso: “Caprichoso, rei do quilombo” (Adriano Aguiar, Saulo Vianna e Uendel Pinheiro) e “Esse boi é meu” (Gaspar Medeiros, Domingos Barbugian, Paulo Lindoso e Jorge Renato).

Não por acaso, são toadas de grande sucesso. A paixão é um sentimento visceral que nos mobiliza profundamente e é fórmula de sucesso em qualquer expressão artística.

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A paixão

Há quem não se arrisque a explicar a paixão. Todavia, sabe-se hoje que é um sentimento primitivo. Não no sentido colonial de selvagem, mas, de ser primeiro e fundamental para a sobrevivência humana.

Nós humanos não nascemos completos, somos extremamente frágeis e dependentes do cuidado dos mais velhos.

Nascemos sem saber andar, nos alimentar, sequer sentar.
Sendo assim, toda a química fisiológica acionada ao gerar, parir, amamentar é necessária para assegurar que a mãe cuide do recém-nascido até que ele se torne, minimamente, capaz de estar vivo sozinho.

De sua parte, o primeiro olhar que o recém-nascido recebe da mãe e/ou cuidador é o da paixão e toda a sua química. Sua vida depende desse olhar apaixonado.

O ciúme

O medo da perda, de ambas as partes, é real. A mãe teme perder o filho, e o filho, a mãe.

Ao longo da infância, os filhos se dão conta de que dividem mães e/ou cuidadores com suas próprias vidas e/ou outras pessoas. E, assim, pode-se experimentar o ciúme.

Digo “podemos” porque, embora toda fisiologia trabalhe por nossa sobrevivência e reprodução, cada existência é uma e experimenta a vida de maneira única.

Além disso, há questões culturais e ambientais que se entrelaçam à biologia.
Contudo, o ciúme infantil seria uma réplica do medo de perder esse outro maternal de quem depende nossa vida ao nascermos, incompletos da capacidade de sobreviver sozinhos e indefesos.

No amor romântico, o ciúme e sentimento de posse seriam uma tréplica desse medo primeiro. Porém, então, de perder o olhar apaixonado de um outro diferente de nossos pais e/ou cuidadores.
E de onde viria a sensação de perda visceral que, comumente, experimentamos na separação, já que, lá no início, tal perda, significaria, a não sobrevivência.

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Meu preto perfeito

Dito isso, note-se que a toada “Caprichoso, rei do quilombo” faz o movimento de atribuir um duplo sentido a palavra “preto”.

Preta é a cor do boi, mas também é um modo carinhoso e íntimo de chamar a pessoa amada no Brasil: “meu preto perfeito, minha vida longe de ti fica fora do eixo”.

O “meu” invoca um sentimento de posse individual a algo que é coletivo, o Caprichoso. Assim, desse modo, se estabelece uma relação a dois.

“Minha vida longe de ti fica fora do eixo” é uma frase que exprime o sentimento de que longe do ser amado, tudo fica desarrumado.

O refrão cantado para o boi Caprichoso, um ser, afinal, inanimado, bem que poderia se dizer a um namorado/a.

Eu sou teu e tu és meu

A toada do boi Garantido toca no sentimento de posse que, não raro, a paixão provoca.

“Esse boi é meu” tem o refrão “ninguém é doido de dizer que eu não te amo, ninguém duvida que esse amor é todo teu, minha paixão é de veludo, espuma e pano, eu sou teu e tu és meu”.

Aqui, novamente, temos uma paixão coletiva transportada para o lugar de uma paixão a dois. Embora o ser amado seja identificado como “de veludo, espuma e pano”, as afirmativas remetem para o lugar do amor romântico.

Por fim, as toadas citadas de Garantido e Caprichoso nos levam a um lugar novo em termos de significado. E não seria exagero afirmar que os bois de Parintins são os namoradinhos dos amazonenses e de quem por eles se apaixonar.

*A autora é antropóloga.

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